quarta-feira, 1 de julho de 2009

O show de Truman



Um filme surgindo como antecipação profética do hipnotismo eletrônico coletivo dos reality-show. Uma criança é preparada, desde o nascimento, para ser astro de um ilusionismo televisivo, em que tudo em sua vida parecerá natural, embora sendo falso. Sendo ator inconsciente de um cenário gigantesco, que é a cidade e o país em que vive, só depois de adulto vai se dando conta de que vive uma realidade artificial, montada para a satisfação da curiosidade mórbida e o vazio existencial de milhões de telespectadores, que também participam de uma bolha, vivem vidas mecânicas e artificiais, embora pareçam serem pessoas normais. Normalidade doentia, criada e consolidada por uma sociedade demente.

Que passou a ser o padrão aceito, tido como legítimo, bom e verdadeiro. Em um frenesi coletivo que galvaniza a atenção de todo o país, como se vê nos Big Brother da vida, de nosso país e de outras nações, mais ou menos “civilizadas” do que a nossa. Tudo na vida de Truman é falso – as pessoas com que se relaciona, os amigos, a mulher com quem vive, e aquela por quem se apaixona – e vem a ser esta a voz que o desperta da ilusão em que vive, chamando sua atenção para o fato de que tudo em sua existência é um grande cenário – relações familiares e interpessoais, todos atores e atrizes de uma farsa cotidiana, todos a pensar e agir como os escravos da caverna, de que falou Platão, a prenunciar profeticamente o absurdo a que seríamos levados, desde o gênese da raça, até o “avanço” tecnológico da aldeia global, que aboliu as distâncias, mas não aproximou as pessoas – ao contrário, fez que se tornassem autistas, cada vez mais distantes dos outros, e de sua verdadeira natureza.

No show da vida tudo é montado e moldado de modo a fazer que as pessoas inseridas dentro da bolha da irrealidade (e todas estão, mesmo os que dirigem o programa, e escrevem seu roteiro) tomem a mentira como verdade, e a ilusão por realidade. A poética denúncia formulada por esta obra de arte vem se confirmando de maneira trágica, à medida em que o tempo passa, e a normose se instala como doença coletiva que ninguém nota, uma vez aceita como padrão “civilizatório” sem o qual ninguém pode sobreviver e “vencer na vida”. Vencer na vida, no caso, pressupõe subir, ascender na pirâmide social, não importando a desfaçatez ou a safadeza dos meios empregados para se atingir os fins ambicionados. Chegamos à trágica situação em que as pessoas envergonham-se de serem honestas, sendo a integridade de caráter uma falha grave, capaz de impedir que uma pessoa alcance “um lugar ao sol” na sociedade da esperteza e da competição voraz.

O mundo mecânico, artificial, mostrado em O show da vida, passou a ser o mundo real (se bem que baseado em ilusões e condicionamentos, tanto sociais quanto produzidos por nossa própria mente. Um mundo neurótico e vazio, alimentado pelo consumo compulsivo de produtos supérfluos. Uma atmosfera idealizada e vazia, movida por pensamentos automáticos e emoções venenosas. Neste quadro neocínico, vendo as coisas no plano político, vemos que candidato é alguém que vem arrancar-nos o sufrágio universal, em nome de projetos e ideais em que não acredita; lutou-se tanto para termos o sufrágio universal, e ele é mais usado para eleger salafrários e safados a serviço do mal.

Ao final de uma falsa fuga por mar, Truman, em um veleiro, vence o seu medo de água. Nele é evidente a determinação de se libertar da bolha de irrealidade em que foi colocado – mas vê, depois de enfrentar tempestades terríveis, que tudo não passou de efeito especial, criado em estúdio. Ao retornar de sua aventura, Truman sobe uma escada – no topo, vê uma porta aberta, pela qual poderia ter saído, mas jamais a vira. Estava sempre ali.

Ocorre que só poderia ver a porta se despertasse da ilusão em que vivia – quanto nós, que também somos prisioneiros da bolha midiática, somos prisioneiros do medo que nos foi ensinado desde crianças. A porta que dá acesso à verdade e à liberdade está sempre aberta... mas sendo prisioneiros do medo e das manipulações que turvam a consciência e massacram a inteligência criativa, preferimos viver sob o brilho das ilusões vazias.
*

Pensar que na Grécia antiga a mente privilegiada (cosmicamente antenada) de Platão foi capaz de antecipar e denunciar a armadilha em que cairia a sociedade dos consumidores compulsivos (em verdade, em seu tempo já caíra). Se alguém duvida, transcrevo um fragmento de A República, um clássico do pensamento universal: “E assim teremos uma cidade para nós e para vós, que é uma realidade, e não um sonho, como atualmente sucede com a maioria delas, onde combatem por sombra uns aos outros, e disputam o poder como se ele fosse um grande bem”.

Se ao menos soubéssemos que todos somos atores a representar papéis no show da vida, poderíamos escapar aos condicionamentos que nos mantém na situação de escravos da caverna. Uma vez escapando do mundo de sombra e limitação em que vivemos toda a vida, julgando ser realidade as imagens que desfilam nas paredes do cárcere, poderíamos despertar para nossa verdadeira natureza, assim podendo enxergar o sol de frente. Ainda que, até nos descondicionarmos do mundo de sombra em que vivíamos, tenhamos de ver as estrelas e a lua refletidas nas águas, percebendo a realidade por reflexo, o que acontece com toda a humanidade, mesmo aos que despertaram do mundo escuro e ilusório em que viviam.


Um comentário:

Elenice disse...

"Sem muito o que dizer.Parabéns e obrigado por nos proporcionar belissimos momentos de total prazer,cada vez que escreve algo.Beijos...Elenice."