segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Rio




Certa vez perguntei ao compositor Antônio Nássara, genuíno filho da Rua Ibituruna, no Maracanã, como ele definia um bom carioca. Isso foi num tempo em que por aqui ainda havia políticos. Ele me respondeu:

— Bom carioca é o que aceita sem ressentimento o fato irremediável de que os bons empregos não foram feitos para ele. E que inútil é disputar com o filho ou o genro de um político mineiro os melhores cargos burocráticos. Uma boca pequena em qualquer repartição pública, onde não tenha que assinar ponto, lhe basta, é o suficiente para que se sinta realizado e agradecido a São Jorge.

Por sua vez, J. Carlos, o fabuloso chargista, costumava dizer que carioca legítimo é aquele que "tendo de resolver um problema urgente, adia-o para o dia seguinte, entre as 3 e 6 da tarde, chega às 8 e ainda bronqueia porque a pessoa com quem marcou encontro não o esperou".

E Marques Rebelo, carioca do Trapicheiro, escreveu que "o carioca está sempre pronto para se divertir, e o Rio, em verdade, não é mais que um imenso parque de diversões". Mas, acrescentava, "com que o carioca se diverte, mesmo, é com as coisas sérias".

A esses três julgamentos-definições, emitidos por inegáveis conhecedores do assunto, eu poderia enumerar uma série sem conta de características e marcas especiais que compõe essa singular criatura sorridente, urbana e versátil, engenhosa e sem complicações, ao mesmo tempo íntima e eqüidistante, esgarçada e vária, a quem se chama de carioca, ente de "alma estóica, sensual e carnavalesca" (Manuel Bandeira). Há quem diga, por exemplo, que carioca legítimo nunca foi ao Pão de Açúcar ou ao Corcovado. Eu mesmo conheci pelo menos três, dos mais genuínos, que nunca lá estiveram: o citado Nássara, o pintor Di Cavalcanti, carioca da Rua Riachuelo, e Paulo Portela. Sei disso porque eles mesmos me contaram. Diz-se também que um bom carioca está sempre em dia com a geografia e a topografia da sua cidade, sabendo perfeitamente distinguir (sem que seja preciso recorrer ao livrojá clássico de Brasil Gérson) a Rua D. Mariana, em Botafogo, da Travessa Mariana, em Ramos; e não desconhece que a Rua da Coragem ("quem mora lá" — dizia Di Cavalcanti — "resiste ao calor local, o mais quente do Rio, abraçado à placa da rua") fica na Penha; a Rua Emerenciana, em São Cristóvão; e a Visc. de Abaeté, em Vila Isabel. Esse povo do Rio, do qual se afirma ser o mais tratável e lhano de todo o mundo, é, como se sabe, uma mistura feliz das mais diferentes tribos.

São tribos nacionais na maioria, que para cá emigraram e continuam emigrando; e, conseqüentemente, uma mistura também de virtudes e defeitos (serão mesmo defeitos?) que já existira aqui ou que para cá foi trazida pelas sucessivas levas migratórias e que muito raramente (na verdade não sei de outro exemplo) pode ser encontrada ao mesmo tempo, conjuntamente, numa pessoa ou mesmo numa população, como acontece com a gente carioca. Enumero de cabeça apenas alguns destes atributos, os mais flagrantes: irrefreável tendência para a vida mansa; bom humor intrínseco e extrínseco; naturalidade; impossibilidade física e mental de se deixar dirigir pelo relógio; alergia ao formalismo, ao dramalhão, à hipocrisia (não confundir com cinismo — às vezes, para safar-se, o carioca é de um cinismo que beira ao descaramento); desprendimento; solidariedade; imunização nata ("carioca já nasce pasteurizado", me disse uma madrugada Ari Barroso) contra a inveja e o ressentimento; improvisação; enraizado otimismo que às pessoas mais graves pode parecer irresponsabilidade — e muitas vezes o é; conversa fácil e colorida, mesmo quando quem fala é de poucas letras; espírito gregário (carioca não sabe viver sozinho); e muitos outros mais. Claro, não é todo carioca que possui todos esses defeitos e virtudes, ao mesmo tempo, mas o fato é que eles se combinam perfeitamente, como as contas de um rosário. E fazem do povo do Rio essa "gente que anda, dança, canta". E que, "entre os morros e as praias, faz a vida, com os altos e os baixos, e protesta, e ri e vê que, afinal, tudo está bom, e que mais valem todos os pássaros voando do que um só na mão..." (Álvaro Moreyra).

Levando em conta o rol de características cariocas acima enumeradas, e que somente a má-vontade e despeito (e como o Rio tem sido vítima dos dois!) poderiam negar, é evidente que a pergunta — O carioca é feliz? — pode ser respondida afirmativamente. Claro que é — está na cara, na dele, carioca, e na de sua cidade, moldura perfeita para a gente que a habita. E vou além: o carioca não é apenas feliz — mas se sente feliz, o que é ainda mais importante. A filosofia mais barata, a de cordel, ensina que existe uma grande diferença entre ser feliz e sentir-se feliz. Há por aí uma porção de gente que tem tudo para ser feliz — materialmente feliz —, a começar por dinheiro e saúde, e não o é. Já o carioca, que raramente tem tudo e quase sempre não tem nada, é um ser fisiologicamente feliz, como as crianças e os gatos — porque se sente feliz. Além dos predicados referidos, que fazem do carioca um ser que se sente feliz, há ainda um outro fator que, na minha opinião (opinião de quem já é carioca há décadas), torna possível esse sentimento de felicidade e lhe garante a perenidade. Refiro-me ao profundo, total entendimento entre o carioca e sua cidade. Os dois se compreendem perfeitamente, completam-se, um está entranhado no outro. Estabeleceu-se entre ambos um salutar estado de mútua complacência e de estima recíproca — milagroso status urbano que, pelo que sei por já ter visto ou ouvido dizer, não se encontra em nenhuma outra cidade do mundo do tamanho e da importância do Rio.

Essa suave atmosfera que se origina das tranqüilas e ternas relações de amizade entre o carioca e a cidade onde ele mora é que faz com que, no Rio, não só sua gente se sinta feliz e descontraída, mas igualmente todas as demais gentes que aqui aportam — de passagem ou para ficar. O Rio, como a crase do poeta Ferreira Gullar, não foi feito para humilhar ninguém. Foi feito para deixar as pessoas à vontade, despojando-as, sem que elas sintam inibições, reservas e preconceitos que aqui não têm nenhuma razão de ser. O Rio é a única cidade do Brasil onde o paulista desencabula e o mineiro toma partido. Além disso, e mercê do seu cosmopolitismo mental, que dela faz uma das metrópoles mais naturalmente civilizadas do mundo (civilização, aqui, no sentido de antiprovincianismo), o Rio é uma cidade que possui o raríssimo dom de não se espantar com coisa alguma, dom que nem Paris tem. A soberba também não é o seu forte. Feito, como queria Mem de Sá, para ser a Rainhas das Províncias. Isso o Rio tem sido e será sempre. Mas se não chegar a ser o empório das riquezas do mundo, como dela queria também o mesmo Mem de Sá, que as riquezas do mundo se lixem. Chicago (onde passei os dez dias mais opressivos de toda a minha vida, castigado ininterruptamente pelos gemidos gelados de um vento de filme de terror) está montada nelas e nem por isso é feliz. E não é por que não tem condições subjetivas para isso; falta-lhe, como em tantas outras cidades ricas, o que o Rio e os cariocas têm de sobra — competência para ser feliz. Voltando ao fator entendimento recíproco, que faz com que o Rio e o carioca se completem e se confundam, não sei se é preciso acrescentar aqui que o carioca só é integralmente feliz (e conseqüentemente alegre) nó Rio. Fora do seu habitat natural ele se transforma de maneira radical, como certas flores especiais tiradas da estufa protetora.

Como estas, longe do Rio o carioca murcha, perde a cor e o tom, azinhavra-se e enevoa-se, e se a ausência do habitat é mais demorada acaba por fenecer por completo. Por já ter visto com os próprios olhos, e um número sem conta de vezes, sei que não pode existir pessoa mais triste e sem graça do que o carioca exilado, mesmo que o exílio seja o mais confortável e bem-remunerado — em Paris, em Londres, em Nova Iorque, numa ilha grega ou em Papeete. Não adianta — longe do Rio, carioca não funciona. Perde o viço e, rendido e indefeso, deixa que dentro de si um lamentável, doentio e suspiroso estado de espírito tome o lugar da sadia e espontânea alegria que foi expulsa; essa alegria que é a sua marca especial e inimitável, a que melhor o define e o destaca em meio ao vário rebanho humano. Ainda na semana passada, em São Paulo, surpreendi num dos esplêndidos bares da cidade um grupo de jornalistas cariocas, todos meus velhos conhecidos, que eu sabia terem trocado por magníficos, irresistíveis salários as amenidades da beira de praia carioca. Do canto do bar, fiquei a olhá-los por alguns minutos. Lá estavam eles bebendo o uísque de classe (25 cruzeiros a dose), elegantes e bem-postos em seus ternos bem cortados. Que tristeza em seus olhos! Que tédio mortal em seus gestos! Apagados, murchos, via-se que bebiam e comiam sem prazer; e não falavam; e quando falavam era aos cochichos, como num velório. Quem os viu e quem os vê, pensei comigo mesmo, e meu primeiro impulso foi o de me juntar a eles e, com a ajuda do brasonado uísque que estavam bebendo, alegrar um pouco aquela ciciante missa de sétimo dia. Mas achei melhor não. Era muita tristeza (a deles) para uma alegria só (a minha).

À semelhança da esmagadora maioria dos cariocas, sinto-me perfeitamente feliz nesta cidade. Aqui cheguei numa tórrida manhã de fevereiro (mais precisamente, na manhã do dia 13 de fevereiro de 1937), vindo pelo Itagiba, simpático ferro-velho que os alemães iriam afundar, cinco anos depois, exatamente na boca do rio Real, lugar onde acaba Sergipe e começa o resto do mundo. Quando desembarquei no Armazém 13 (numerozinho jóia!) tinha de mim 18 anos incompletos, 200 mil réis e uma carta de apresentação para um figurão federal, carta que, aliás, nunca foi entregue, pois o destinatário mandava dizer sempre que não estava quando eu ia procurá-lo (já morreu o infeliz, e que a terra lhe seja leve.) Vim — e aqui estou. O meu querido Paulo Mendes Campos escreveu certa vez, e acertou em cheio, que "o carioca tem o gosto e o dom de igualar os homens, de refugar as sofisticações, de considerar apenas em cada pessoa, independente de qualquer valor, a sua capacidade de convívio". Sem querer ser imodesto, acho que sou também mais ou menos assim. Como igualmente me repugna, como ao Rio, na citação de PMC, "qualquer pose ou afetação". De forma que sendo o Rio como é e sendo eu como sou, nosso convívio tem sido bastante fácil — e só não é mais por culpa exclusiva minha, que às vezes engrosso sem motivo. Mas isso só se dá quando, movido por incontroláveis impulsos telúricos, deixo por alguns instantes de ser carioca e volto a ser nordestino. O que, graças a Deus, vem acontecendo cada vez mais raramente.


Joel Silveira é sergipano de Aracajú, onde nasceu em 23 de setembro de 1918. Veio para o Rio em 1937, tendo se destacado como jornalista e escritor. Tem hoje cerca de 40 livros publicados. Foi agraciado com o prêmio "Machado de Assis", o mais importante da Academia Brasileira de Letras, em 1998, pelo conjunto de sua obra. Foi também ganhador dos prêmios "Líbero Badaró", "Prêmio Esso Especial", "Prêmio Jabuti" e o "Golfinho de Ouro".

O escritor e jornalista faleceu no dia 15 de agosto de 2007 na cidade do Rio de Janeiro.


Texto extraído do livro "
Memórias de Alegria", Editora Muad — Rio de Janeiro, 2001, pág. 131.

Ferreira Gullar



Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos

Dona Doida


Adélia Prado


Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso

com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,

decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,

trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,

com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,

meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.


O texto acima foi extraído do livro "
Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.

Que valha a pena


O jovem contemplava o oceano no convés de um navio cargueiro, quando uma onda inesperada o atirou no mar. Depois de muito esforço, um marinheiro conseguiu resgatá-lo.

“Obrigado por salvar minha vida”, disse o rapaz.

“Tudo bem”, respondeu o marinheiro. “Mas procure vivê-la como algo que valeu a pena salvar”.

Os tesouros



O mestre sufi Abu Muhammad al-Jurayry costumava dizer:
— A religião possui dez tesouros, que nos enriquecem. São cinco interiores e cinco exteriores; todos aqueles que seguem o caminho espiritual devem estar conscientes disto.

“Eis os tesouros interiores: capacidade de ser verdadeiro, despreocupação com os nossos bens, humildade na aparência, equilíbrio para evitar dificuldades com os outros, e força para reagir”.

“Eis os tesouros exteriores: descobrir um Amor supremo, despertar o desejo de estar junto a este Amor, ter inteligência para ver as próprias faltas, estar consciente de tudo que acontece na vida, e ser grato pelas bênçãos recebidas”.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A Espiritualidade Budista e a Sombra Psicológica.....

"A Espiritualidade Budista e a Sombra Psicológica e suas Relações com a Educação e Formação Humana parte 1"


Irei propor a todos nós uma reflexão e associação entre Budismo, Psicologia e Educação. De início, são áreas da vida que me interesso por terem contribuições para a formação humanamente humana.

Mas por que Budismo e não outra filosofia oriental, ou mesmo ocidental?

Na Psicologia Clínica existem abordagens de conhecimento que podem e devem ser utilizadas para melhor compreensão do ser humano. Muitos Psicólogos Clínicos, originalmente treinados nas abordagens ocidentais de psicoterapia, têm sido atraídos pelo caráter introspectivo da "psicologia budista", que é vista como um suporte capaz de auxiliar o homem em sua busca do significado da vida e, na tentativa de compreensão de si mesmo, da mente e da natureza da experiência.

A Psicoterapia Transpessoal é uma delas, e decorre de uma expansão ou ampliação do campo da pesquisa psicológica. Tem sido profundamente influenciada pelo Budismo, um dos mais antigos sistemas médico-filosóficos conhecidos, cujo conteúdo ético, religioso e espiritual é de grande profundidade. Porém, inicialmente irei expor as interlocuções entre Budismo e Educação, posteriormente incluindo como a Psicologia foi se apropriando de novos olhares para integrar o ser humano.

Para uma compreensão adequada das possíveis contribuições do budismo à educação é necessário que noções centrais de ambos os campos sejam desenvolvidas. Não se pode pensar na educação, quer do ponto de vista teórico, quer do prático, sem pressupor que a mesma está fundada na admissão de que o ser humano deve atingir uma determinada condição que ainda não se encontra desenvolvida, atualizada ou presente. Segundo o Prof. Dr. Policarpo Junior, o significado de "Educação", em sua forma profunda e ampla, é trazer de dentro para fora, é saber conviver consigo mesmo e com os outros, tendo aí uma contribuição grega, no qual crescer significa crescer juntos, com todos, com a própria polis.

A ciência sofreu, ao longo dos séculos, uma conversão progressiva ao estudo daquilo que é, ou seja, do que existe independentemente do sujeito, e que está despido de toda consideração quanto ao que deve ser. Assim, para fazer referência apenas às últimas décadas, algumas das finalidades educativas apregoadas com muita influência no Brasil foram: a produção de capital humano, a revolução ou transformação social, a formação para a democracia, a cidadania, as competências e a formação do sujeito aprendente (este último principalmente e quase unicamente, e olhem que nem estou me referindo às escolas públicas). Não se deve negar a pertinência de nenhum desses objetivos, nem mesmo sua relação determinada com a tarefa educativa. No entanto, é importante reconhecer que todas essas finalidades se originam de preocupações exteriores à educação, ou de outros campos de saber - como a economia, sociologia, ciência política, psicologia - que não a própria educação. A teorização sobre o educar muitas vezes termina por consagrar a subordinação da educação aos ditames sociais e culturais, legitimando assim a falsificação do conceito e da prática educacionais.

Porém, a dimensão do conhecimento e seu princípio orientador é a busca da verdade (ou deveria ser). Tal princípio está também relacionado à condição da vida humana. Educar para o Amor seria, então, o maior desafio a se conseguir na Educação; e, caso se consiga isto, o objetivo da educação como "Conviver consigo mesmo e com os outros" terá sido alcançado.

Mas, como os homens em meio ao mundo encontram-se ainda na imperfeição - e em um estado que por si só justifica a existência da educação - esta própria finalidade existente acima não pode, portanto, constituir-se em representante final e exclusiva do critério da utilidade, porque aquilo que se configura útil no estado atual não necessariamente reveste-se do sentido daquela utilidade aliada à busca da verdade. Então a dimensão a ser ressaltada na educação, como teoria e prática formativas da humanidade no homem, deve ser o exercício da introspecção.

Quando a vida pessoal é vivida com sabedoria, a tendência é perceber que, de fato, não há separação entre introspecção e ação no mundo. Por meio da auto-reflexão, isto é, os hábitos mentais e comportamentais, os sentimentos e emoções podem se tornar progressivamente mais conhecidos, e com isso é possível que o indivíduo transforme seus limites, fraquezas, medos, potencialidades e virtudes em algo familiar, refletindo sobre eles e passando de fato a conhecê-los (e não apenas vivendo como seu refém). Em outras palavras, em Psicologia Transpessoal, isso significa integrar a sua sombra. Por intermédio desse exame interno minucioso e freqüente, torna-se possível à pessoa contemplar com serenidade suas atitudes e hábitos mentais, e gradualmente agir de acordo com os princípios da própria auto-reflexão e contemplação; e, embora a coerência não seja atingida imediatamente, surgirá aos poucos a percepção clara dos aspectos pessoais que resistem a se integrar, a fim de que a pessoa possa vir a aceitar-se como é, e assumir de fato a direção de si com plena lucidez, compreensão e coerência. A partir dessa integridade surge a idéia de uma unificação progressiva consigo mesmo (individuação), compreendida como o processo de superação contínua das diversas cisões interiores, o que permite que se dissipem muitas das oposições antes consideradas como conflito, como observou Carl Jung em seus estudos.

Os aspectos vistos até aqui referem-se à formação humana, aqui entendida como a idéia de que a humanização é um processo. Nosso nascimento biológico, e mesmo as diversas formas de socialização universalmente disponíveis não são, por si só, garantia de realização puramente humana. Formação humana é um modo próprio de viver que se constitui pelo reconhecimento dignificante em relação aos outros seres humanos e à natureza, de modo a ter atitudes de compromisso, respeito e cuidado nos âmbitos pessoais, interpessoais, comunitários, sociais, naturais e ambientais.

Para o budismo, o entendimento da formação humana consiste na dissolução progressiva da ignorância básica dos seres. Para essa tradição, a natureza fundamental de todos os entes permanece pura, compassiva, amorosa e equânime, em meio às suas inúmeras ignorâncias, de um modo completo, inalterado e incessante. Para facilitar a compreensão e permitir a comparação dos elementos pertencentes a tradição budista com o escrito acima, é preciso pontuar algumas observações sobre o budismo e as contribuições que poderia ter nas escolas ocidentais, assim como as orientais:

A primeira observação budista refere-se ao sofrimento universal dos seres humanos e não-humanos. Esse entendimento alcançado pelo Buda antes mesmo de atingir sua liberação completa foi o principal motivo que o moveu em sua jornada espiritual de autodescobrimento. O Buda descobriu que o sofrimento alimenta-se de causalidades surgidas da ignorância dos seres quanto a sua natureza intrínseca; no entanto, se estes conseguissem reconhecer tal natureza e nela repousassem com estabilidade, poderiam superar seus enganos e remover as causas desses sofrimentos.

Ao reconhecer a profundidade da origem do sofrimento, a tendência dos ensinamentos budistas é de nutrir um sentimento de compaixão pelos seres, por compreender a condição de igualdade entre aquele que sobre isso reflete e todos os demais seres. Nas palavras do Dalai Lama, essa compreensão aparece como a base da compreensão e agir éticos, que não precisam estar associados a nenhum credo ou tradição, mas podem plenamente ser a base de uma ética leiga, a qual se afirma do seguinte modo: "Todos os seres têm o mesmo direito à felicidade e à libertação do sofrimento".

Dessa forma, ato de reconhecer, acolher e contemplar a condição de sofrimento de todos os seres e seu desejo de felicidade proporciona o desenvolvimento do sentido de igualdade e o surgimento de um sentimento compartilhado: a compaixão. Assim como naturalmente, sem nenhum esforço, qualquer um é capaz de se comover com um amigo ou parente que sofre, ou alegrar-se com seu êxito, do mesmo modo a identificação pessoal e vivenciada com a condição universal dos seres para experimentarem o sofrimento ou a felicidade, que é o pressuposto segundo o qual, de acordo com o ensinamento budista, se pode nutrir uma compaixão progressivamente equânime e profunda para com todos. Assim, a compaixão é o resultado verdadeiro da realização do princípio da igualdade, na tradição budista.

Outra dimensão observada pelo budismo é a da verdade. O tema da verdade é de grande complexidade em todas as tradições filosóficas, e no budismo não se constitui exceção. De acordo com o Prof. Dr. Aurino Lima, a educação formal ocidental prioriza os ensinamentos escolares como a verdade única, impedindo a ampliação para o sentir, e para outros ensinamentos que não aqueles passados pelo professor na escola.

Na maioria das escolas de filosofia budista se reconhece a existência de duas verdades: uma verdade absoluta e uma verdade relativa. Também há variações no entendimento dos sentidos dessas verdades de escola para escola. Adotam-se aqui, entretanto, os sentidos das verdades relativa e absoluta tais como foram concebidos e propagados pela escola de pensamento Mahayana, ou Grande Veículo, não é só uma escola de pensamento, mas uma grande forma ou princípio de entendimento e prática do budismo. Foi assim considerada por admitir a inseparabilidade entre a iluminação e a compaixão verdadeira. O praticante mahayana faz votos de não buscar a iluminação para si, mas para a liberação de todos os seres.');" onmouseout="nd();">Mahayana e a escola Madhyamika (ou Madhyamaka), que teve como seu fundador um dos maiores expoentes, o mestre espiritual e erudito Nagarjuna. Por meio da compreensão da natureza absoluta e de sua permanente inspiração na vida pessoal e social, o budismo admite que os seres podem finalmente se liberar das causas do sofrimento.

Todos admitem sem questionamento a realidade independente do mundo, das coisas e seres a sua volta. A própria ciência é uma criação sofisticada, que consiste em demonstrar de forma inequívoca a natureza e as propriedades das coisas e fenômenos de um ponto de vista fundamentalmente objetivo, isto é, de um modo que não se restrinja a simples opinião ou preferência. Neste âmbito existe a verdade relativa. Esta se refere, portanto, a um mundo convencional.

Com o fato de os seres humanos poderem visualizar, compreender, apreciar e interagir com o mundo através da sua sensorialidade e estrutura mental, é possível operar a distinção entre erro e acerto, entre verdade e falsidade. No entanto não é preciso muita reflexão para discernir que tal verdade é relativa à experiência humana, e possível apenas em determinados tempos históricos e contextos culturais. Essa análise da verdade relativa, para o budismo, não se aplica apenas aos objetos materiais, mas igualmente às sensações, percepções, pensamentos, formulações abstratas e ao próprio "eu" humano. Assim, a sensação humana de frio ou calor é totalmente relativa. Aqui nem cabe ressaltar o quanto as emoções e a mente são passíveis de relatividade. Mas, em síntese: corporeidade, emoções e pensamentos não gozam de existência intrínseca, e nenhum deles em particular pode definir a natureza do "eu".

Onde se poderia, portanto, encontrar o aspecto da verdade absoluta?

Admitindo-se que toda dualidade entre sujeito e objeto, sejam eles quais forem, significa uma verdade relativa, conclui-se que a verdade absoluta ou última não é algo que possa ser encontrado dessa maneira. A verdade absoluta pode ser experimentada pela percepção não-dual, mas ela mesma não se restringe à experiência. A verdade absoluta é algo que não pode ser apreendida de forma independente da experiência ou da condição do próprio observador. Assim, a verdade absoluta é a própria condição, sem condições, do surgimento dos fenômenos; a dimensão sem-dimensão do surgimento de sujeito e objeto; a vacuidade de fenômenos que também se expressa nos próprios fenômenos. Surgir, estabilizar-se e extinguir-se são aspectos da natureza relativa, que, no entanto, se sustenta na natureza absoluta: que não nasce, não se estabiliza nem se desestabiliza, nem morre. Apenas É.

O principal motivo da compreensão e estabilização da verdade absoluta tem por meta a ação desapegada e compassiva em meio ao mundo e aos seres, visando o bem-estar de todos eles, os quais também são a expressão da verdade absoluta.

Nota-se assim que os ensinamentos budistas - embora utilizando linguagem distinta das teorias clássicas da educação no ocidente - convergem em seus princípios com a meta educacional. Mais do que simples coincidência, tal convergência parece surgir devido à natureza do objeto educacional, que é a formação humana. Desse modo, o fundamental para o âmbito educativo não parece ser a contribuição de uma tradição ou teoria em particular, mas, principalmente, a clareza sobre os princípios que configuram a natureza do educar. Sem estes, a própria idéia de possíveis contribuições de outros campos teóricos, científicos ou espirituais pode mais atrapalhar do que trazer benefícios à teoria e à prática da formação humana, ou seja, a Educação.

Fontes:
Palestra: A Espiritualidade Budista e a Sombra Psicológica e suas Relações com a Educação do Prof. Dr. Aurino Lima Ferreira e Prof. Dr. José Policarpo Júnior dois fundadores do Núcleo de Pesquisa em Educação e Espiritualidade na UFPE. Palestra ministrada no Espaço Cultural Cor do Coque Instituto de Formação Humana, 17 de Setembro de 2009.
IFH: Instituto de Formação Humana
DALAI LAMA, XIV. O Caminho para a liberdade. Tradução: Beatriz Penna. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 2003.
PADMA SAMTEN, Lama. 2000. Os Doze elos da originação interdependente. (Ensinamentos orais transmitidos em agosto e dezembro de 2000, na Fundação Peirópolis, e em Guarulhos, SP, transcritos por Eliane Steingruber). São Paulo: mimeo.
POLICARPO JUNIOR, José. 2004. A Individualidade - concepção negativa e positiva, segundo o budismo

sábado, 3 de outubro de 2009

A gnose

A gnose das correntes esotéricas possui dois traços bem característicos. Por um lado, abole a distinção entre fé e conhecimento (a fé não é mais necessária, a partir do momento em que se sabe); por outro, supostamente possui uma função soteriológica, isto é, contribui para a evolução individual daquele que a pratica. O termo gnose serve para designar tanto essa própria atitude espiritual e intelectual quanto os corpus de referência que a ilustram.
(Antoine Faivre)


    Hans Zimmer - Chevaliers De Sangreal

Por Stephan A. Hoeller (contribuição do Coringa)

As palavras gnóstico e gnosticismo não são exatamente comuns no vocabulário dos nossos contemporâneos. De fato, há mais pessoas familiarizadas com o antônimo de gnóstico, isto é, "agnóstico"; literalmente, esse termo significa um desconhecedor ou ignorante, mas em sentido figurativo descreve uma pessoa sem fé religiosa, que não se ressente de ser chamada de ateísta. No entanto os gnósticos já existiam muito antes dos agnósticos, e, na maioria, parecem ter representado uma classe muito mais interessante que o último grupo. Em oposição aos não-conhecedores, eles se consideravam conhecedores - gnostikoi, em grego - denotando aqueles que possuem a gnose ou o conhecimento. Os gnósticos viveram, na maior parte, durante os três ou quatro primeiros séculos da Era Cristã. Em geral, provavelmente eles não teriam se autodenominado "gnósticos"; teriam se considerado cristãos, ou mais raramente judeus, ou ainda seguidores das tradições dos antigos cultos do Egito, da Babilônia, da Grécia e de Roma. Não eram sectários nem membros de uma nova religião específica, como queriam seus detratores, mas pessoas que compartilhavam entre si certa atitude perante a vida. Pode-se dizer que essa atitude consistia na convicção de que o conhecimento direto, pessoal e absoluto das verdades autênticas da existência é acessível aos seres humanos, e, mais ainda, que a obtenção de tal conhecimento deve sempre constituir a suprema realização da vida humana.

Esse conhecimento ou Gnose não era concebido como um saber racional de natureza científica, ou mesmo um saber filosófico da verdade, mas um conhecimento que brota no coração de forma misteriosa e intuitiva, sendo, portanto, chamado em pelo menos uma obra gnóstica (o Evangelho da Verdade) de Gnosis Kardias (o conhecimento do coração). Trata-se, é claro, de um conceito que é ao mesmo tempo religioso e altamente psicológico, pois o significado, o propósito da vida não aparece então nem como a fé - com sua ênfase na crença cega, e na também cega repressão - nem como as ações, com sua extrovertida orientação para as boas ações, mas sim como uma transformação e uma visão interior; em suma, um processo ligado à psicologia profunda.

Se passarmos a considerar os gnósticos como os primeiros profissionais da psicologia profunda, torna-se imediatamente aparente a razão pela qual a prática e o ensinamento gnóstico, de forma radical, diferia da prática e do ensinamento da ortodoxia cristã e judaica. O conhecimento do coração, em favor do qual os gnósticos se empenhavam não podia ser adquirido por meio de uma barganha com Jeová, ou através de um tratado ou aliança que garantisse bem-estar espiritual e físico ao homem, em troca do cumprimento servil de um conjunto de regras. Da mesma forma, não se poderia obter a Gnose pela mera crença fervorosa de que a atitude de sacrifício de um homem divino na história pudesse aliviar a carga de culpa e frustração de nossos ombros e assegurar bem-aventurança perpétua, além dos limites da existência mortal. Os gnósticos não negaram o benefício do Torá nem a magnificência da figura de Cristo, o ungido do Deus supremo. Eles consideravam a Lei necessária a um certo tipo de personalidade, que precisa de regras para o que atualmente poderíamos chamar de "a formação e o fortalecimento do ego psicológico". Também não negaram a importância da missão do personagem misterioso que, em seu disfarce, era conhecido pelos homens como o rabino Joshua de Nazaré. A Lei e o Salvador, os dois mais reverenciados conceitos de judeus e cristãos tornam-se, para os gnósticos, apenas meios para um fim maior que esses mesmos conceitos. Eles configuravam incentivos e artifícios, de alguma forma capazes de conduzir ao conhecimento pessoal que, uma vez obtido, prescinde tanto da lei como da fé. Para eles, como para Carl Jung muitos séculos depois, a teologia e a ética constituíam apenas pontos de partida no caminho do autoconhecimento.

Dezessete ou dezoito séculos separam-nos dos gnósticos. Durante esse período, o gnosticismo tornou-se não apenas uma fé esquecida (como um de seus intérpretes, G. R. S. Mead, chamou-o), mas também uma fé e uma verdade reprimidas. Aparentemente, quase nenhum outro grupo foi temido e odiado de forma tão incansável e persistente, por quase dois milênios, quanto os infelizes gnósticos. Textos de teologia ainda se referem a eles como os primeiros e mais perniciosos de todos os hereges, e a era do ecumenismo não lhes parece ter estendido nenhum dos benefícios do amor cristão. Muito antes de Hitler, o imperador Constantino e seu cruel episcopado iniciaram a prática do genocídio religioso contra os gnósticos, sendo esses primeiros holocaustos seguidos por muitos outros no decorrer da história. A última grande perseguição terminou com o sacrifício de aproximadamente duzentos gnósticos em 1244, no castelo de Montségur, na França, um acontecimento que Laurence Durell descreveu como "as Termópilas da alma Gnóstica". Apesar disso, alguns proeminentes representantes das vítimas do último holocausto não consideraram a minoria religiosa mais perseguida da história como companheira de infortúnio, como indicam os ataques de Martin Buber a Jung e ao gnosticismo. Judeus e cristãos, católicos, protestantes e os ortodoxos orientais (e, no caso da Gnose Maniqueísta, até os zoroastristas, os muçulmanos e os budistas) odiaram e perseguiram os gnósticos com persistente determinação.

Por quê? Seria apenas porque seu antinomianismo ou sua desconsideração pela lei moral escandalizava os rabinos, ou porque suas dúvidas relativas à encarnação física de Jesus e sua reinterpretação da ressurreição enfurecia os sacerdotes? Seria porque eles rejeitavam o casamento e a procriação, como afirmam alguns de seus detratores? Eram eles detestados devido a licenciosidades e orgias, como alegam outros? Ou poderia ocorrer que os gnósticos realmente tivessem algum conhecimento, e que esse conhecimento os tornasse sumamente perigosos às instituições, tanto seculares como eclesiásticas?

Não é fácil responder a essa indagação; contudo, deve-se fazer uma tentativa. Poderíamos ensaiar uma resposta dizendo que os gnósticos diferiam da maior parte da humanidade, não apenas em detalhes de crença ou de preceitos éticos, porém em sua visão mais essencial e fundamental da existência e de seu propósito. Sua divergência era "radical" no sentido mais exato da palavra, por reportar-se à raiz (latim: radix) das atitudes e conjeturas da humanidade com respeito à vida. Independentemente de suas crenças filosóficas e religiosas, a maioria das pessoas acalenta certas suposições inconscientes, pertencentes à condição humana, que não originam das atividades convergentes de formulação da consciência, mas que irradiam de um profundo e inconsciente substrato da mente. Essa mente é regida pela biologia, e não pela psicologia; ela é automática, e não está sujeita a escolhas conscientes nem a percepções. A mais importante dessas suposições, a qual poder-se-ia dizer que sintetiza todas as outras, consiste na crença de que o mundo é bom e que o nosso envolvimento nele é de alguma forma desejável e fundamentalmente benéfico. Essa premissa conduz a inúmeras outras, todas mais ou menos caracterizadas pela submissão às condições externas e às leis que parecem governá-las. A despeito dos incontáveis acontecimentos incoerentes e maléficos em nossas vidas, dos incríveis fatos que se sucedem, dos desvios das reiteradas insanidades da história humana, tanto coletiva como individualmente, acreditaremos ser nossa incumbência prosseguir com o mundo, pois ele é, afinal, o mundo de Deus, devendo, portanto, haver significado e bondade ocultos em seus processos, mesmo que seja difícil discerni-los. Assim, devemos continuar no cumprimento de nosso papel dentro do sistema, da melhor maneira possível, sendo filhos obedientes, maridos zelosos, esposas respeitosas, bem-comportados açougueiros, padeiros, fabricantes de velas, esperando contra toda a esperança, que uma revelação do significado resulte, de algum modo, dessa vida de resignação sem sentido.

Não é assim, disseram os gnósticos. Dinheiro, poder, governo, constituição de famílias, pagamento de impostos, a infinita série de armadilhas das circunstâncias e obrigações - nada disso foi jamais rejeitado tão total e inequivocamente na história humana como pelos gnósticos. Estes nunca esperaram que alguma revolução política ou econômica pudesse ou devesse eliminar todos os elementos iníquos do sistema em que a alma humana encontra-se aprisionada. Sua rejeição não se referia a um governo ou sistema de propriedade em favor de outro; ao contrário, dizia respeito à total e predominante sistematização da vida e da experiência. Portanto, os gnósticos eram, na verdade, conhecedores de um segredo tão fatal e terrível que os governantes deste mundo - i.e., os poderes secular e religioso, que sempre lucraram com os sistemas estabelecidos da sociedade - não podiam permitir ver esse segredo conhecido, e muito menos tê-lo publicamente proclamado em seus domínios. De fato, os gnósticos sabiam algo: a vida humana não alcança a sua realização dentro das estruturas e instituições da sociedade, porque estas representam, na melhor das hipóteses, apenas obscuras projeções de outra realidade mais fundamental. Ninguém atinge sua verdadeira natureza individual sendo o que a sociedade espera nem fazendo o que ela deseja. Família, sociedade, igreja, ocupação e profissão, lealdade patriótica e política, bem como regras e normas morais e éticas, na realidade de modo algum conduzem ao verdadeiro bem-estar espiritual da alma humana. Ao contrário, constituem, com maior freqüência, as próprias algemas que nos alienam de nosso real destino espiritual.

Esse aspecto do gnosticismo foi considerado herético em épocas passadas e até hoje costuma ser chamado de "negação do mundo" e "anti-vida"; porém constitui, obviamente, nada mais que boa psicologia e boa teologia espiritual, por se tratar de bom senso. O político e o filósofo social podem considerar o mundo um problema a ser resolvido, mas o gnóstico, com seu discernimento psicológico, reconhece-o como uma condição da qual precisamos nos libertar pela visão interior. Isso porque os gnósticos, como os psicólogos, não buscam a transformação do mundo, mas a transformação da mente, com sua consequência natural - uma mudança de postura perante o mundo. A maior parte das religiões também tende a ratificar uma atitude familiar de interiorização na teoria; contudo, como resultado de sua presença dentro das instituições da sociedade, elas sempre negam isso na prática. As religiões costumam se iniciar como movimentos de libertação radical seguindo linhas espirituais mas, inevitavelmente, terminam como pilares das próprias sociedades, as carcereiras de nossas almas.

Se desejamos obter a Gnose, o conhecimento do coração que liberta os seres humanos, devemos nos desvencilhar do falso cosmo criado pela nossa mente condicionada. A palavra grega Kosmos, bem como o vocábulo hebraico Olam, embora quase sempre mal traduzidos como Mundo, realmente designam mais o conceito de Sistemas. Quando os gnósticos diziam que o "sistema" à sua volta era mau e que precisaríamos sair dele para conhecer a verdade e descobrir o seu significado, comportavam-se não só como precursores de inúmeros alienados da sociedade - de São Francis de Assis até os Beatniks e os Hippies - mas também exprimiam um fato psicológico desde então redescoberto pela moderna psicologia profunda: Jung reafirmou uma antiga percepção gnóstica ao dizer que o extrovertido ego humano deve, em primeiro lugar, tomar plena consciência de sua própria alienação do "Self Superior" antes de poder começar a retornar ao estado de união mais íntima com o inconsciente. Até nos conscientizarmos inteiramente da inadequação de nosso estado de extroversão e de sua insuficiência quanto às nossas necessidades espirituais mais profundas, não obteremos nenhum grau sequer de individuação, através da qual uma personalidade mais madura e ampla surge. O ego alienado é o precursor e uma pré-condição inevitável do ego individualizado.

Como Jung, os gnósticos não rejeitavam necessariamente a Terra per se, mas a reconheciam como uma tela sobre a qual o Demiurgo projeta seu sistema ilusório. Quando nos deparamos com uma condenação do mundo nos escritos gnósticos, o termo usado é fatalmente Ordem, organização.');" onmouseout="nd();">Kosmos ou Este eon, e nunca a palavra Ge (Terra), que consideravam neutra, se não totalmente satisfatória.

Era desse conhecimento - o conhecimento que se tem no próprio coração a respeito da inutilidade espiritual e absoluta insuficiência das instituições e valores estabelecidos do mundo exterior - que os gnósticos valiam-se para construir tanto uma imagem de ser universal como um sistema de inferências coerentes a serem extraídas dessa imagem (Como era de esperar, eles o realizaram não tanto em termos de filosofia e teologia, mas em termos de mito, ritual e cultivo das qualidades imaginativas e mitopoéticas da alma). Como muitas outras pessoas inteligentes e sensíveis, antes e depois de sua época, eles se sentiram estrangeiros num país desconhecido, uma semente abandonada dos mundos distantes de luz infinita. Alguns, tal como a juventude alienada dos anos 60, retiraram-se para comunidades e eremitérios à margem da civilização. Outros, mais numerosos talvez, permaneceram em meio à vasta cultura metropolitana das grandes cidades, como Alexandria e Roma, aparentemente desempenhando seus papéis na sociedade, enquanto no íntimo serviam a um mestre diferente - no mundo, mas não do mundo. A maioria deles tinha instrução, cultura e riqueza; entretanto, continuavam conscientes do inegável fato de que todas essas realizações e tesouros perdem a cor perante a Gnose do coração, o conhecimento do que existe. Não surpreende que o mago de Küstnacht, que desde sua primeira infância buscou e encontrou a própria Gnose, tivesse afinidade com esse povo estranho e solitário, esses peregrinos da eternidade, prontos para voltar ao lar entre as estrelas.

Referência:
A Gnose de Jung e os sete sermões aos mortos;
The Gnostic society bookstore;
Imagens: Carl Jung: The Holy Grail of the Unconscious (The New York Times)