quarta-feira, 30 de setembro de 2009

100 anos de José Antonio da Silva


100 anos de José Antonio da Silva , o pintor mais naïf e primitivista de todos os tempos


José Antonio da Silva ao lado do polêmico vereador João Benvindo, que lhe rendeu as homenagens de Cidadão Honorário pela Câmara de São José do Rio Preto e abaixo caricatura de Lézio Junior






Desde o começo do mês venho inserindo obras deste extraordinário pintor, poeta, escritor juntamente com poesias, poemas relacionados a mulher, homenageadas este mês pelo seu dia internacional. José Antonio da Silva tem uma vasta obra que seria impossível deste modesto blog inserir todas, publiquei algumas somente para que meu leitor tenha uma idéia de seus traços e o estilo naïf e seu modo de viver.


Neste
quadro
ao lado
a pintura
de sua
mãe
Brasilina
e as
vibrantes
cores que
predomina
em todos
seus
trabalhos.







Biografia de José Antônio da Silva



“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou”. “Há anos me chamam de gênio. Apenas endosso. Não tenho complexo de inferioridade”.




Realmente, ser modesto não era o forte do pintor José Antônio da Silva, nascido em 1909 na cidade de Sales de Oliveira, interior paulista.




Trabalhador rural, na infância conduzia bois junto com o pai. Por isso, a imagem de destes animais sempre esteve muito presente em sua obra. Viveu de fazenda em fazenda, e há dúvidas sobre quando começou a pintar.




Em um de seus livros, “Romance de minha vida”, ele conta que desenhava desde pequeno, em folhas de café e na areia. Mas também fala que fez visitas ao céu e ao inferno, portanto há que se analisar cuidadosamente suas palavras.




O certo é que em 1930 Antônio foi para São José do Rio Preto, onde fez sua primeira exposição em 1946 e foi “descoberto” pelos críticos Paulo Mendes de Almeida e Lourival Gomes.




Estes se empenharam para trazer sua obra para São Paulo, o que aconteceu em 1948, ano de sua primeira exposição individual na Galeria Domus. O sucesso foi grande e entre os compradores de sua obra estava Pietro Maria Bardi, que adquiriu 10 quadros para o Museu de Arte de São Paulo.




Foi aceito para a primeira Bienal, em 1951, teve um quadro seu incorporado ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, fez exposições internacionais. Mas sua mais célebre exposição talvez tenha sido a que não participou: a quarta Bienal. Deixado de fora pelo júri, que incluía Lourival Machado, Silva ficou profundamente chateado e irritado. Certa noite acordou e disse à sua esposa que iria matar os membros do júri. No entanto, ao invés de fazê-lo literalmente, foi para seu ateliê e pintou o enforcamento dos cinco membros (O Enforcamento do Júri, 1967, Museu de Arte Primitivista José Antônio da Silva). Em cima da forca, uma figura que lembra Jesus Cristo e que segura uma plaqueta: “A justiça divina não falha”. Fios ligam o pescoço dos enforcados a uma figura ao lado, representando o inferno: “Aqui é o esquinto (sic) dos infernos”. Abaixo dos enforcados, a frase: “(...) o mesmo crítico que mi (sic) deu o título de maior primitivo brasileiro foi o primeiro a me jogar fora da Bienal(...)”.




Talvez esta obra resuma um pouco da personalidade e obra controvertidas de José Antônio da Silva que, em 1980 recebeu um museu em sua homenagem: o Museu Municipal de Arte Primitiva José Antônio da Silva, em São José do Rio Preto, São Paulo.




Apesar de sua origem humilde, de seu pouco estudo e domínio da linguagem culta, Silva era conhecido por sua facilidade de expressão, de articulação de idéias e pensamentos, o que o levou a ser, além de pintor, autor de livros, como o “Romance de minha vida”, publicado em 1949, “Maria Clara” em 1970 e “Sou pintor, sou poeta” em 1981.




As cores vibrantes, um colorido quase circense, dão tom às suas obras. Primitivista, teve como tema constante em suas telas o ambiente rural, principalmente cenas onde aparecem bois e plantações, e também as manifestações culturais do povo, como os ritos religiosos. Como ele mesmo explicou em seus versos: “pinto a lavoura/ Também pinto as pastaria/ Pinto a empregada e a patroa/ Pinto a Joana e a Maria./ Pinto carroça e carreta/ Pinto carro e carretão/ Pinto o pedreiro na picareta/ Pinto o colono no enxadão” (em “Sou pintor, sou poeta”, de 1982).




Sua última exposição individual foi no museu de Arte Sacra em São Paulo: “A paixão e morte de Nosso Senhor segundo Silva”.




José Antônio Silva morreu em 1996, na cidade de São Paulo.

sábado, 26 de setembro de 2009

Kabir


Eu não sou devoto nem ateu,
Não me guio por lei nem por razão,
Não sou conferencista e não sou ouvinte,
Não sou nem servo nem senhor,
Não estou acorrentado, tampouco sou livre,
Não estou ligado nem desligado.
Não estou longe de ninguém:
Não estou próximo de ninguém.
Não irei nem para o inferno nem para o céu,
Cumpro todos os meus deveres,
Embora deles esteja apartado.
Poucos compreendem o que quero dizer:
Aquele que compreende, permanece impassível.
Kabir não procura nem estabelecer nem destruir.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Espiral da Ética



*por Tom Coelho

“Não é o cérebro que importa mais, mas sim o que o orienta:
o caráter, o coração, a generosidade, as idéia.”
(Dostoievski)

A violência e a intolerância têm dominado o mundo. Observe como elas estão ao seu redor. Nos noticiários da televisão, nas páginas dos jornais e das revistas, nas conversas em rodas de amigos.

Impotentes que nos sentimos diante de sua escalada, recorremos às leis, contratos firmados entre os homens para regular a convivência em sociedade. Passamos a defender a pena de morte, um maior rigor na aplicação das normas, a antecipação da maioridade penal. Buscamos proteção e sequer percebemos que pouco contribuímos para alcançá-la.

O efeito estufa ganha notoriedade e o aquecimento global deixa de ser retórica de cientistas e ecologistas para mostrar sua face real. Estamos comprometendo nossa sustentabilidade e as gerações futuras.

Os males que nos afligem decorrem de nossa natureza egoísta. Não basta sermos ambiciosos. Precisamos cultivar a ganância. Queremos sempre mais. Mais posses, mais bens, mais exposição. Mais coisas quantificáveis, palpáveis, que possam ornamentar uma parede ou serem vistas sobre um móvel de mármore. E, em contrapartida, temos menos carinho, companhia, afeto. Beijamos pouco e abraçamos menos ainda.

Todo jovem, em algum momento de sua vida, nutre a utopia de construir uma sociedade mais justa onde as diferenças sócio-econômicas sejam abrandadas. Ele sabe de sua força e da importância de suas ações para obter este feito. Mas a idade adulta nos visita e passamos a acreditar que a humanidade não pode ser salva e que uma atitude pontual é insuficiente para surtir efeito.

Aqui reside a grande quebra de paradigma. São as pequenas ações individuais, tomadas coletiva e sucessivamente, a gênese da transformação. Lembro-me de um provérbio chinês que diz: “Antes de iniciares a tarefa de mudar o mundo, dá três voltas na tua própria casa”.

A este processo contínuo e envolvente denominei “Espiral da Ética”. A imagem da espiral remete a algo flexível e em constante movimento ascendente. E a ética invoca aos preceitos morais que habitam com naturalidade nosso íntimo.

Alimentamos esta Espiral da Ética através de nossos comportamentos e atitudes. Obedecendo aos limites de velocidade e não trafegando pelo acostamento. Priorizando pedestres e dando passagem a outro veículo. Respeitando vagas e assentos reservados aos idosos e deficientes físicos. Aguardando o desembarque das pessoas de um elevador e segurando a porta para outras o adentrarem antes de você. Evitando estacionar o carrinho de compras no meio de um corredor no supermercado e impedir a passagem das demais pessoas. Ouvindo com atenção seu interlocutor num debate em vez de preocupar-se apenas em expor suas opiniões.

Poderíamos desfilar muitos outros exemplos. E você poderá fazer sua própria lista e começar a colocá-la em prática imediatamente. Inspirado na obra escrita por minha amiga Rosana Braga, intitulada “O Poder da Gentileza”, resolvi chamar a cada uma destas ações de “pílulas de gentileza”.

Trata-se de pequenas drágeas encapsuladas na mente e sorvidas pelo coração. O princípio ativo é dado pelo amor, com elevada concentração de generosidade e benevolência. A posologia recomenda administrar uma autêntica overdose diária. Os efeitos colaterais são variados e os estudos a este respeito ainda não foram concluídos. Sabe-se apenas que no curto prazo foram observadas a ocorrência de brilho no olhar, redução da angústia e da ansiedade, surtos freqüentes de entusiasmo e alegria. E no longo prazo, a expectativa de um lugar melhor para se viver.

Loren Eiseley foi um antropólogo, arqueólogo e escritor norte-americano, conhecido por suas obras publicadas acerca da teoria evolucionista do homem. Em um de seus escritos, magnificamente retratado em um breve filme intitulado “A História do Jogador de Estrelas”, fragmento de obra de Joel Barker, distribuído com exclusividade no Brasil pela Siamar, ele relata que um poeta caminha pela praia quando encontra um jovem arremessando estrelas-do-mar de volta ao oceano, para salvá-las da maré baixa e forte sol que se avizinham. O homem se aproxima e interpela o rapaz dizendo-lhe que sua atitude é inútil diante da imensidão da costa marítima que acometerá fatalmente a maioria daqueles seres. Portanto, seria impossível que sua ação isolada pudesse fazer alguma diferença. O jovem ouve atentamente seu argumento, inclina-se em direção à areia, recolhe outra estrela-do-mar e a atira longe da rebentação. Então, aproxima-se do homem e lhe diz: “Fez diferença para aquela”.

Estou certo de que se conscientizando e agindo em direção a práticas mais nobres e menos superficiais, você encontrará a sua estrela-do-mar. E, com ela, sua essência, a paz e a calma que tanto merece. Ao fazer isso por você, estará fazendo também por mim. E por todos nós.



sábado, 19 de setembro de 2009

Jalaluddin Rumi

Ontem à noite, confidencialmente, eu disse a um velho sábio:
- Não me esconda nada dos segredos do mundo!
Muito docemente, ele me disse ao ouvido:
- Chut! Podemos compreender, mas não exprimir ( Rumi )

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O NOVO SEMPRE VEM... (E VAI)




Gostaria de compartilhar uma imagem que anda ocupando minhas reflexões ultimamente, já que está no desktop do meu computador.

Os detalhes são interessantíssimos, e seus contrastes suscitam vários paralelos que não vou ficar mencionando pra não dirigir suas próprias divagações. Vale a pena ver a imagem em tamanho grande, que foi capturada por Thery_lg no Flickr.

POst do S. Matrix

domingo, 13 de setembro de 2009

Kabir, o poeta apaixonado por Deus

Reverenciado como santo por hindus, muçulmanos e sikhs, ele combateu o fanatismo religioso e proclamou a unidade profunda de todas as religiões. Seus poemas são ainda hoje recitados em salas de aula e cantados alegremente por milhões de seguidores


O fanatismo religioso tornou-se uma das maiores doenças do mundo contemporâneo. Cristãos contra judeus, judeus contra muçulmanos, muçulmanos contra hindus, hindus contra budistas, a epidemia parece não ter fim, sobrevivendo ao avanço da ciência, à democratização das formas de governo e ao vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação. Neste tempo de conflitos, temos muito a aprender com a experiência dos grandes místicos que, ultrapassando as diferenças exteriores das religiões, foram capazes de alcançar sua unidade profunda. Kabir, o célebre poeta indiano do século XV, foi um dos maiores. Em versos inspirados, ele ironizou a tolice dos fanáticos. E proclamou seu amor irrestrito a Deus. Na Índia, é até hoje reverenciado como santo por adeptos de três religiões: o hinduísmo, o islamismo e o sikhismo.

O nome que adotou, Kabir Das, já é uma expressão de sua submissão a Deus e de seu ecumenismo religioso. Pois Kabir é a palavra árabe para "Grande". E Dasa, o termo sânscrito para "Servo". Kabir Das, o "Servo do Grande", nasceu na cidade santa de Benares (Varanasi), em 1398. Atribuindo-lhe uma existência extremamente longa, de 120 anos, seus seguidores afirmam que ele viveu até 1518. Porém os estudiosos ocidentais tendem a considerar 1448 como o ano mais provável de sua morte.

Os europeus – ou ao menos Colombo – ainda não haviam chegado à América. Mas, na Índia, duas tradições místicas, profundamente semelhantes em sua essência, experimentavam um momento de apogeu: o bhakti hinduísta e o sufismo muçulmano. Ambas elegiam o amor apaixonado como forma preferencial de relacionamento entre o homem e Deus. Ambas reivindicariam Kabir como um de seus maiores mestres. O mesmo seria feito pelos sikhs, que incluíram centenas de versos do poeta em seu livro sagrado. A afinidade de Kabir com aquilo que o bhakti e o sufismo possuem de mais característico encontra-se perfeitamente condensada nesta frase magistral: "Desde o dia em que me encontrei com meu Senhor, o jogo de nosso amor não teve fim".

Sua biografia atesta que, desde o início, ele estava destinado a transpor as barreiras que separavam as comunidades hinduísta e islâmica. Pois diz a tradição que, tendo sido abandonado pela mãe, uma viúva hindu da casta dos brâmanes, foi adotado como filho por um tecelão muçulmano. Sua educação islâmica não o impediu de, ainda menino, aproximar-se de um importante mestre espiritual hinduísta: Ramananda, discípulo do célebre Ramanuja. Reconhecendo em Ramananda seu guru predestinado, Kabir pediu ao iogue que o aceitasse como discípulo. E assim ocorreu.

Em sua famosa Autobiografia de um Iogue, Paramahansa Yogananda (1893-1952) afirma que Kabir teve também um outro mestre: ninguém menos do que o grande Babaji, o sublime iogue cujos devotos afirmam estar vivo e oculto na Terra há quase dois mil anos. Quaisquer que tenham sido suas fontes de inspiração, é certo que Kabir possuía íntima familiaridade com a cultura da yoga, especialmente com a antiquíssima tradição dos siddhas, os chamados "iogues perfeitos".

Vegetariano e visceralmente contrário aos sacrifícios de animais, pautou sua vida pelo princípio da não-violência (ahimsa). A esse respeito escreveu: "O homem que é gentil e pratica a retidão, que se mantém impassível em meio à turbulência, que considera as criaturas do mundo como seu próprio eu, este alcança o Ser imortal; o verdadeiro Deus está sempre com ele". Mas, ao contrário de tantos ascetas, ele não renunciou às atividades mundanas nem foi celibatário. Consta que, como seu pai adotivo, exerceu o ofício de tecelão. E que casou e teve dois filhos. A tradição atribui à sua esposa o nome de Loi.

Benares era então dominada pelos brâmanes, a casta sacerdotal. Com suas opressivas regras sobre o que podia ou não podia ser feito, os brâmanes atormentavam a vida das pessoas comuns. Por aceitar mulheres em seu amplo círculo de discípulos, Kabir passou a ser hostilizado pelos sacerdotes. Porém não se deixou intimidar. E respondeu aos ataques com poemas satíricos. Mais tarde, quando o muçulmano Tamerlão (Timur, o Coxo) devastou a cidade e as rígidas autoridades islâmicas passaram a mandar na vida religiosa, ele igualmente ridicularizou seus ritos. Suas farpas contra os fanáticos das duas religiões conquistaram o coração do povo, mas despertaram a ira dos poderosos. Objeto de intrigas, o poeta foi exilado de Benares. Isso não impediu que a fama de sua santidade se espalhasse pelo país e que um número cada vez maior de seguidores se reunisse à sua volta.

Seus ataques às formas exteriores das religiões não devem ser entendidos como um menosprezo pela fé das pessoas. Foram, ao contrário, a expressão de um homem que experimentou Deus dentro de si mesmo. E que estava ansioso por comunicar ao mundo a força libertadora dessa experiência, que transcende os dogmas, as regras e os ritos. Como Jesus, Kabir ensinava seus discípulos a rezarem em silêncio, sem ostentação, em íntima comunhão com a Divindade. Em um de seus mais belos poemas, ele afirmou:

Com a mente imersa no Amor, por que deveria eu falar?
Havendo amarrado o diamante, por que desfazer o nó? (...)
O cisne, alcançando o lago, precisa nadar em poças e pântanos?
Teu Senhor é teu próprio Ser; por que procurá-lo fora?
Kabir diz: Escuta minhas canções!
Eu realizei o Senhor internamente, como o óleo contido na semente.
(tradução de José Tadeu Arantes)

De volta a Benares, ele continuou ensinando, apontando a diferença entre a experiência religiosa e a superstição. Foi um mestre até a última respiração. Passou seus derradeiros 40 dias vivendo em um lugar do qual diziam que, se alguém nele morresse, renasceria na próxima vida como asno. Quando finalmente morreu, hindus e muçulmanos reclamaram seu corpo, cada comunidade querendo proporcionar-lhe ritos fúnebres de acordo com suas respectivas regras. Conta a lenda que, ao erguer o lençol mortuário, a multidão se surpreendeu ao descobrir que o corpo havia desaparecido. Em seu lugar, havia apenas um belo buquê de flores. Este foi dividido em duas partes iguais: conforme seus costumes, os hindus cremaram uma metade e os muçulmanos enterraram a outra. Seus poemas continuam a ser recitados por crianças em sala-de-aula e cantados por milhões de devotos. Diz um deles:

Um diamante estava jogado na rua, coberto de sujeira.
Muitos tolos passaram ao largo.
Alguém, que conhecia diamantes, este o colheu.

Que o brilho diamantino de sua vida nos ajude a dissipar as trevas deste tempo de ignorância!

fonte Sufismo

Rudolf Steiner: o retrato do visionário

Homem universal, ele se dedicou com sucesso aos mais variados campos do conhecimento. E construiu um sistema abrangente que integra o espírito e a matéria. Neste artigo, acompanhamos a fase inicial de sua trajetória.


Numa época em que as atividades humanas se tornam cada vez mais segmentadas e os profissionais se isolam em seus estreitos nichos de especialização, temos muito que aprender com a experiência daqueles que realizaram em suas próprias vidas o ideal do "homem universal". É o caso de Rudolf Steiner (1861-1925). Ele legou ao mundo contribuições importantes em domínios tão diversos como a filosofia, a pedagogia, a medicina, a agricultura, a arquitetura e as artes plásticas. E criou a Antroposofia, um sistema abrangente, que integra conhecimentos do mundo espiritual e do mundo material e oferece orientações originais e criativas para os mais variados campos de atuação. Suas obras científicas, artísticas e espirituais e os sucessos da medicina e pedagogia antroposóficas conquistaram seguidores em todo o planeta. Não é preciso ser antroposofista para reconhecer sua genialidade.

Steiner era um gênio na acepção da palavra. É fascinante acompanhar seus passos na época da infância e da juventude, quando a descoberta do mundo e de si mesmo constituíam o prato diário.

Rudolf Steiner nasceu no dia 27 de fevereiro de 1861, na cidade de Kraljevec, hoje pertencente à Sérvia. Mas era um austríaco, tanto étnica quanto culturalmente. Seus pais, Johann e Franziska, eram originários da Áustria.

O pequeno Steiner viveu até os oito anos na cidade de Pottschach, cercada de montanhas majestosas e paisagens verdejantes. Sua atenção dividia-se, então, entre a natureza maravilhosa e o mundo tecnológico. Porque a família morava no edifício da estação de trens e ele cresceu vendo o vaivém dos comboios e ouvindo o toque nervoso do telégrafo. Depois de brigar com o professor da escola, o pai decidiu ocupar-se pessoalmente de sua educação, ensinando-o a ler e escrever enquanto executava suas tarefas na estrada de ferro. Steiner era o primeiro filho do casal, mas logo ganhou a companhia de um irmão e uma irmã.

Uma infância pobre, porém feliz

Quando tinha oito anos, uma nova transferência do pai arrastou a família para a aldeia de Neudörfl. Os altos cumes dos Alpes, antes tão próximos, tornaram-se marcos distantes no horizonte. Mas a Serra da Rosália, em cuja encosta ficava a aldeia, forneceu ao pequeno Steiner uma abundante cota de natureza. Em suas florestas, ele podia colher amoras, framboesas e morangos, com os quais complementava o pão com manteiga do jantar. E, a uma hora de marcha, havia uma fonte de água gasosa, que ele visitava diariamente na época das férias. As condições econômicas da família eram as mais modestas. O próprio Steiner referiu-se a elas com humor, anos mais tarde, dizendo que seus pais estavam dispostos a sacrificar até o último tostão pelo bem-estar dos filhos, mas que havia cada vez menos tostões.

Em Neudörfl, ele passou a freqüentar a escola, como outros garotos de sua idade. E, aos nove anos, teve o seu primeiro contato com a geometria. Foi uma revolução interior. Muito tempo depois, ele diria que, na geometria, havia encontrado a felicidade pela primeira vez.

A geometria forneceu a Steiner uma espécie de justificativa para o que ele mesmo experimentava. Pois, desde antes dos oito anos, começara a vivenciar o dom da clarividência. Para ele, o mundo espiritual era tão real quanto o mundo sensorial. E, ao lado das coisas "que se enxergam", percebia a presença daquelas "que não se enxergam". Isso representava uma profunda certeza interior. Mas ele precisava provar para si mesmo que sua experiência não era fruto da ilusão. A indiscutível existência dos entes geométricos ofereceu-lhe, indiretamente, essa "prova".

Experiências mantidas em segredo

O pequeno Steiner viveu uma dessas experiências inusuais numa sala da estação de Neudörfl. Sozinho, ele percebeu abrir-se uma porta que não pertencia ao mundo físico. Dela saiu uma mulher, que chegou até o meio da sala e disse algo como "procure, agora e no futuro, fazer por mim tudo o que você puder". A entidade fez ainda alguns gestos impressionantes. E desapareceu. Alguns dias mais tarde, o menino soube que, no exato momento em que aquele estranho episódio acontecia, uma pessoa íntima da família se suicidava.

Fenômenos como esse são até hoje encarados com desconfiança. Na inculta e preconceituosa Europa Central do final do século XIX, então, nem se fala. Apesar da pouca idade, Steiner percebeu que, se contasse sua experiência, ele se tornaria alvo de deboches – ou até de coisa pior. Demonstrando um autocontrole que seria surpreendente até mesmo num adulto, ele se calou e só comunicou essa vivência infantil muitos anos mais tarde.

O episódio da estação foi apenas a primeira experiência propiciada por uma clarividência que, em Steiner, era perfeitamente natural. Uma faculdade psíquica como essa pode produzir efeitos desastrosos numa pessoa mal estruturada. Intuitivamente, o garoto logo percebeu que, se quisesse manter a lucidez e integrar o seu dom numa vida psíquica saudável, precisava construir uma sóbria e sólida visão da realidade. As ferramentas para isso eram as ciências naturais, a matemática e a filosofia.

Uma inesquecível aula de astronomia

O menino teve a felicidade de encontrar, tanto em seu professor quanto no padre da igreja local, não apenas incentivadores calorosos, mas também pessoas esclarecidas, que influenciaram fortemente sua própria evolução intelectual. Esse padre reuniu, certa vez, os alunos mais adiantados e explicou-lhe longamente o sistema planetário de Copérnico, os movimentos de translação e rotação da Terra, a inclinação do eixo terrestre e as estações do ano – assuntos que, ainda naquela época, muitos religiosos consideravam tabus. A Steiner, ofereceu um ensinamento extra sobre os eclipses do Sol e da Lua. O entusiasmo causado por essas informações reverberou durante dias na mente do menino.

A partir dos 10 anos, Steiner passou a freqüentar o liceu da cidade vizinha de Wiener-Neustadt. O trajeto até lá era feito normalmente de trem. Mas as freqüentes interrupções no serviço ferroviário obrigavam-no, muitas vezes, a fazer o percurso a pé. Isso significava uma hora de marcha, com tempo bom. Ou uma caminhada bem mais lenta e difícil, com neve até os joelhos, nos dias de inverno.

Esses esforços físicos não intimidavam o rapaz. O que o deixava aturdido eram os excessivos estímulos sensoriais da cidade grande. Ele se refugiava, então, no mundo puramente ideal da matemática, onde seu espírito se sentia em casa. Em pouco tempo, dominou sozinho o cálculo integral. E, combinando o que aprendia em aula com suas iniciativas como autodidata, adquiriu também notáveis conhecimentos em geometria descritiva e estatística. Quanto à geometria propriamente dita, ele afirmaria mais tarde que estava "completamente doido por ela". A escola soube reconhecer o seu talento e atribuiu-lhe uma nota que jamais havia sido dada.

O encontro com a filosofia de Kant

Aos 14 anos, Steiner adquiriu um exemplar de A crítica da razão pura, de Kant – uma obra filosófica difícil, que muito intelectual adulto não teria coragem de encarar. Como não tinha tempo para ler em casa, pois precisava realizar os deveres escolares e ajudar no trabalho doméstico, resolveu fazê-lo durante as aborrecidas aulas de história. Desmontou o livro de Kant e colou cuidadosamente cada uma de suas páginas entre as folhas do manual escolar. Fingindo acompanhar as exposições do professor, estudou metodicamente a filosofia kantiana.

Kant estreitara drasticamente o horizonte cognitivo da humanidade, considerando cognoscível apenas aquilo que podia ser apreendido pelos sentidos. Steiner, que conhecia o mundo espiritual até melhor do que o mundo sensorial, sabia, por experiência própria, que essa posição era, no mínimo, insuficiente. Todo o grande trabalho intelectual de sua juventude – desenvolvido a partir dos 21, quando editou e comentou os escritos científicos de Goethe – foi pautado pela necessidade de construir uma teoria do conhecimento alternativa à de Kant. Foi com base nela que ele pode, mais tarde, edificar sua antroposofia.

Mas, aos 14 anos, a atenção de Steiner ainda estava intensamente mobilizada pelo estudo da matemática e das ciências naturais. Bem como pela leitura da história, da doutrina e do simbolismo cristãos. Para custear sua educação, começou a dar aulas particulares, tendo, como alunos, tanto estudantes mais jovens quanto seus próprios colegas de classe. Aos 18 anos, graduou-se com distinção no liceu, recebendo o conceito "exemplar".

Por pressão do pai, que queria fazer dele engenheiro, Steiner se matriculou na Escola Politécnica de Viena. Enquanto as aulas não começavam, prosseguiu sua investigação pessoal da filosofia. Tendo completado o estudo de Kant, vendeu seus velhos livros escolares e, com o dinheiro recebido, comprou uma série de obras dos grandes filósofos do idealismo alemão: Fichte, Hegel, Schelling e seguidores. A questão que o motivava era a atividade cognitiva do "eu" humano. Por experiência própria, ele estava convencido de que o "eu" era espírito e vivia num mundo de seres espirituais. O processo de conhecimento construía uma ponte que ligava esse domínio supranatural à natureza.

Personagens enigmáticos, mestres misteriosos

Steiner continuava a manter em segredo os seus dons paranormais. Apenas com duas pessoas, ele compartilhou, nessa época, suas experiências. O primeiro era um homem do povo, com mais de 40 anos, que colhia ervas medicinais no campo para vendê-las às farmácias vienenses. Chamava-se Felix Koguzki. O jovem Steiner o conheceu no trem. Era uma pessoa simples, que nada sabia de ciências e filosofia. Possuía, porém, uma sabedoria inata, elementar e criativa. E uma experiência profunda tanto do mundo natural quanto do mundo espiritual. Steiner tornou-se amigo desse colhedor de ervas, junto do qual sentia estar na presença de uma alma muito antiga, que lhe trazia o saber instintivo de uma época intocada pela civilização.

O segundo interlocutor era ainda mais misterioso. Não conhecemos sequer o seu nome. Sabemos apenas que, sob o disfarce de uma profissão modesta, exercia conscientemente uma missão espiritual. Era grande conhecedor de ciências e filosofia e exerceu uma influência profunda na evolução do pensamento de Steiner. Este já havia estabelecido sua grande meta: religar a ciência e a espiritualidade, reintroduzir Deus na ciência e a natureza na religião, e, a partir disso, fecundar de novo a vida e a arte. Seu mestre oculto indicou-lhe o caminho a seguir para alcançar esse objetivo.

O adversário a ser combatido era a visão de mundo materialista e reducionista, que dominava o pensamento científico e toda a consciência intelectual da segunda metade do século 19. Se quisesse vencer esse modo de pensar, Steiner devia começar por conhecê-lo a fundo e reconhecer a parcela limitada de verdade que existia nele. Só então estaria capacitado a falar ao homem moderno nos termos em que este era capaz de compreender.

A edição dos escritos de Goethe

Steiner mergulhou ainda mais fundo no estudo das ciências da natureza. E na vibrante atividade dos círculos intelectuais e artísticos vienenses. Aos 19 anos, conheceu um outro homem que exerceria influência decisiva em sua vida: Karl Julius Schröer, poeta e erudito, que lecionava literatura alemã na Escola Politécnica de Viena. Schröer estava trabalhando na edição e comentário da segunda parte do Fausto, de Goethe. Por meio dele, Steiner travou contato com a obra e o pensamento do grande poeta alemão.

A conexão de Schröer com a herança goethiana era tão profunda que, quando conversava com seu professor, por horas a fio, Steiner tinha a sensação de que uma terceira entidade se fazia presente: o espírito do próprio Goethe. Foi por indicação de Schröer que, em 1882, ele foi convidado a editar os escritos científicos goethianos. Steiner os publicou em cinco livros, acompanhados por comentários que mostram o quanto havia progredido em sua própria reflexão filosófica.

Em oposição às idéias científicas de sua época, que concebiam a natureza como um mecanismo frio e sem alma, constituído apenas por matéria em movimento, Goethe (1749-1832) vira o mundo natural como uma totalidade viva e orgânica, impregnada de espírito. Essa visão de mundo coincidia com tudo o que Steiner havia descoberto por experiência própria. Sua grande tarefa foi tornar explícito e sistemático esse pensamento que, na obra de Goethe, é apenas insinuado. Não é exagero dizer que ele a realizou de maneira magistral. Se hoje podemos apreciar as grandes contribuições filosóficas e científicas de Goethe, e não somente o seu teatro e a sua poesia, isso se deve ao trabalho de Steiner.

Com a edição do último volume dos escritos goethianos se encerrou, em 1897, a etapa inicial de sua vida. Steiner era agora um homem maduro. Ele estava pronto para voar muito alto, com suas próprias asas.

Para saber mais

Johannes Hemleben, Rudolf Steiner, Editora Antroposófica.

sábado, 12 de setembro de 2009

A palavra




... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.

*Butifarra: espécie de chouriço ou lingüiça feita principalmente na Catalunha, Valência e Baleares. (N. da T.)



Pablo Neruda


Do livro "Confesso que Vivi

Famigerado

Famigerado

Guimarães Rosa


Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

Famigerado?

— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.


Texto extraído do livro "
Primeiras Estórias"

Borges e eu

Borges e eu


Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agra­dam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atribu­tos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamen­te, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.


José Luis Borges

Princípio da Solidariedade -

Princípio da Solidariedade - Texto premiado pela UNESCO

Um sorriso nos lábios, um olhar esperançoso, um gesto repleto de gratidão, um coração feliz diante de um ato que concretiza o mais nobre sentimento e se conhece por um nome: solidariedade.Ato de olhar o mundo com cuidado, sabendo o quanto é importante que ele esteja saudável.Ato de ter empatia pelo outro.Ato inerente àqueles que amam verdadeiramente.Não só em palavras, mas em síntese, por completo.
O mundo é competitivo, muitos querem sempre mais vantagens materiais, intelectuais, mais poder e status que os outros.A linguagem deste tipo de mundo afirma que o importante é ganhar e não medir esforços para isso.E, muitas vezes, esses esforços são: terríveis genocídios, traições, violência gratuita, inveja consumada, egoísmo inaceitável, atitudes irracionais, um verdadeiro coquetel de ambição exacerbada.Mas, o indivíduo não pode precisar este sentimento competitivo, sem analisar o propósito dessas ações.Por que não abolir a competição e ratificar a cooperação? Por que vendar os olhos do coração e anestesiar os sentimentos? Que prêmio é tão importante que não pode ser compartilhado,e deve ser alegria só de alguns?
O mundo seria muito mais contente, mais aconchegante, muito mais charmoso se fosse mais sorridente.Para isso acontecer, ele precisa ser mais solidário.E, não é difícil como alguns podem pensar.É muito mais fácil e útil fazer brotar um sorriso no rosto de uma pessoa, que leva – lá a chorar.É compreender o mandamento e discernir sobre ele: “ame ao seu próximo, como a si mesmo”.É respeitar as diferenças e discriminar o preconceito.Fazer o bem, mas olhando e respeitando a quem.Enxergar a alma do outro, através do olhar.Ter sensibilidade para identificar suas necessidades.Não esperar algo em troca.Se doar sem querer barganhar vantagens.Chorar com aqueles que choram, gargalhar com aqueles que demonstram seu momento de felicidade.Ver nos outros retratos de sua própria vida e, abençoar as famílias de todos como quer que a sua seja abençoada.Riscar dos seus princípios a palavra acepção.Confirmar a palavra cooperação.Acender como uma estrela e concretizar este gesto de amor.
Fora violência, absurda em todas as suas classificações; em suas guerras e ditaduras dispensáveis e alimentadas pela competição. Ajuda a todos os povos; a todas as crianças, sejam elas, africanas, russas, chinesas, judias, palestinas,americanas.Pois, é maravilhoso cumprir de forma consciente o que traz realização ao próximo,sabendo exercer a boa ação, participando ao mundo uma bela e eficaz missão que é a apologia ao amor, ao respeito e cuidado ao ser humano: o princípio da solidariedade.

Priscilla Lima




Solidariedade... É uma palavra diferente.

Solidariedade... É uma palavra diferente.
É uma palavra que incomoda um pouco...
Incomoda porque embora seja difícil de pronunciar, é o seu verdadeiro significado que “faz mexer”...
Fundamenta-se em valores que não conseguimos quantificar por maior que seja o número em euros (ou a falta deles).
Mas o que é a Solidariedade?
O que é ser solidário?
Lanço-vos o desfio de lerem esta mensagem até ao fim. Apenas isso.
Ser Solidário, é acima de tudo, respeitar, incondicionalmente tudo o que nos rodeia...
Ser Solidário, é sentir a necessidade ínfima de partilhar...
Ser Solidário, é perceber que as diferenças só existem porque é mais fácil criar distâncias do que gerir dificuldades...
Ser Solidário, é sentir que é possível mudar, o que está errado E que para isso basta acreditar...
Ser Solidário, é querer ir mais além, é ser mais alto interiormente, é ser maior de coração...
Ser Solidário, é perceber que a alegria de dar é indiscutivelmente superior à de receber...
Ser Solidário, é estender a mão, sem olhar à cor, ao sexo, ao estatuto social (ou à falta dele) e à conta bancária (desculpem-me a ironia)...
Parece-vos utópico tudo isto?
Um romancezeco-semi-sonho com final feliz?
Não é garanto-vos!
Apenas defendo, porque acredito, que a interiorização de um sentimento desta índole, torna-nos efectivamente “pessoas melhores “...
E Solidariedade só quando é Natal?
Ou quando a Natureza “avisa” que ainda manda nisto tudo??
NÃO!!! NATAL É QUANDO UM HOMEM QUISER!!!
Sermos solidários, quando percebermos que é possível fazer alguma coisa, dizer NÃO, ao egoísmo em que todos vivemos, ao nosso fácil acomodamento, face à miséria, à solidão; à injustiça social e a tantas mas tantas coisas mais...
É mais fácil pensar que não é connosco se algo de profundamente errado e injusto se passa ao nosso lado:
- Sabia que há pessoas a passar fome?
- Sabia que há crianças com apenas poucos meses que vivem em carros abandonados?
- Sabia que há crianças que têm como companheiros de brincadeiras, nos seus “pseudo-quartos”, muitas baratas, e até cobras?
- Sabia que há famílias como a minha e como a sua a viver em currais de porcos e outras “habitações afins”?
- Sabia que se pode morrer de solidão?
Se não sabia, ficou a saber que tudo isto é real e que se passa bem mais perto de si do que pensa… CONSEGUE, AINDA ASSIM, SENTIR-SE UMA PESSOA FELIZ???
Vivemos num mundo de quimeras adiadas, frustradas e cansadas...
Num mundo de mácula, atolado de “mentes vazias” perdidas no seu “ego”, na sua majestosa moradia, nos seus carros topo de gama...
Completamente mergulhados numa vida egocêntrica, que nos condena irreversivelmente à solidão. Acredita que podemos mudar isto?
Eu acredito, porque afinal a
DISTÂNCIA É A DE UM PASSO

POST F.GIL

No deserto de Mojave



No deserto de Mojave, é freqüente encontrarmos as famosas cidades-fantasma: construídas perto de minas de ouro, eram abandonadas quando todo o produto da terra tinha sido extraído. Haviam cumprido seu papel, e não tinham mais sentido.

Quando passeamos por uma floresta, também vemos árvores que - uma vez cumprido seu papel, terminaram caindo.

Mas, diferente das cidades-fantasma, o que aconteceu? Abriram espaço para que a luz penetrasse, fertilizaram o solo, e seus troncos estão cobertos de vegetação nova.

A nossa velhice vai depender da maneira que vivemos o momento presente. Podemos terminar como uma cidade- fantasma, simplesmente abandonados. Ou então como uma generosa árvore, que continua a ser importante, mesmo depois de caída por terra.

POR UMA VIDA MENOS ORDINÁRIA

Post por S.da Matrix

Lembro que o lema do blog era "Por uma vida menos ordinária". Acho que isso dizia tudo. Os blogs nada mais eram do que registros de futilidades, uma forma de satisfazer a necessidade de atenção que todos nós temos (sim, estou me incluindo aí) em um nível ou outro. Dizem até que o nome Blog vem da sigla "B-log = Bullshit log", ou registro de porcarias.

Nesse tempo eu já estava há anos engajado no trabalho de fazer da Internet uma "Nova Alexandria", onde o conhecimento devia ser para todos, sem barreiras econômicas, linguísticas ou sociais. O conhecimento era disseminado de forma virótica, as pessoas estavam sedentas de informação, empolgadas com essa nova ferramenta que era a internet, mas confusas com todas as novas dificuldades que o cybespaço trazia. E uma mão lavava a outra, pacientemente, cada um da sua forma, somando forças para reforçar as trincheiras da sociedade livre. Essa fase romântica durou de 96 a 2000, por aí. A navegação foi ficando mais fácil, mais pessoas entrando e trazendo todas as suas bagagens emocionais para dentro desse novo território. E com isso a segregação por países, a má educação, a futilidade, o desprezo. O comércio deu a tônica, e como sempre fazem, investem na individualidade em detrimento da sociedade (dividir para conquistar... e vender mais).

Há uma certa decepção em ver aquilo no qual você investiu tanto esforço e esperança crescer e se tornar um adolescente medíocre, mas nem tudo foi perdido: se hoje temos MP3 de graça e filmes pra baixar, isso se deve ao esforço de milhares de anônimos que uniram força para lutar pela liberdade e dizer não ao paradigma do "pague para ter".

Mas, voltando ao blog, eu considerava essa ferramenta mais um reflexo da estupidez que estava dominando a internet. Mas aí eu pensei: eu poderia subverter o uso dessa coisa, e colocar tudo aquilo que sai da "normalidade" e que a sociedade faz questão de ignorar para manter o povo sem pensar, sem questionar. E minha vida era cheia de "causos" anormais. Então começou o Acid Blogger.

Minha idéia era ser o fósforo no palheiro, o detonador que levaria a pessoa a rever seus pré-conceitos, quebrar seus paradigmas e começar a espalhar - ela mesma - sua própria filosofia em outros blogs, nas suas próprias casas, etc. O destino deu sua forcinha quando o blog foi descoberto pelo pessoal do Somos Todos Um e eles passaram a escolher artigos semanais para publicar no site. Com isso o número de acessos foi catapultado de 20 para 100 visitas ao dia. Felizmente há alguns anos não era moda ser esotérico, então somente pessoas com a cabeça boa frequentavam o site, discordando, acrescentando, debatendo, tudo com educação e bom-senso... esses foram os tempos áureos do que já tinha se tornado o Saindo da Matrix. As pessoas tinham seus próprios blogs, que eu visitava e aprendia com elas, e reinava o espírito de comunidade.

Com o crescimento ainda maior do blog, achei por bem diminuir os relatos pessoais, e tentei até ocultar meu nick, trocando-o pelo impessoal "Saindo da Matrix". Afinal, sempre frisei aqui que o importante eram as idéias, não a pessoa. Mas as pessoas antigas já me conheciam por Acid, e assim começou um processo de identificação do conteúdo do blog com o mantenedor do blog (justo o que eu procurava evitar!). Isso traz dois perigos: um, a adoração, a maior de todas as ciladas. Outro, o ódio e inveja de pessoas medíocres - mergulhadas que estão no individualismo e competitividade, necessitando por isso de auto-afirmação - que não conseguem ver nada ser construído para a prosperidade do próximo sem ficarem profundamente irritadas. E assim o blog atraiu uma leva de espíritos cujo interior são trevas, e que, ao trazer à tona o pior do lado humano, me fizeram cada vez mais desgostar de escrever aqui. Os outros membros da comunidade blogueira também tiveram seus motivos para parar, e assim a corrente se desfez.

Todos perdem quando uma alma se cala. Cada pessoa é única, e pode (deve!) contribuir desinteressadamente para o crescimento do próximo com sua experiência. Se hoje temos uma lâmpada é porque Thomas Edison tentou mais de 1.000 vezes atingir esse objetivo. Como bem observou Einstein, "cem vezes ao dia eu me lembro de que minha vida interior e exterior é baseada no trabalho de outros". Não devemos deixar que apenas a Rede Globo ou o Governo Federal cuidem de nossa formação. Precisamos ouvir a dona-de-casa, o lixeiro, o funcionário público, o garotinho da venda, e também um pouco de cada pessoa que passa pela nossa vida. Isso nao significa concordar com elas, mas aprender com elas! O discernimento é seu, ninguém vai roubá-lo! Só uma pessoa insegura tentará impor sua verdade!

Gostaria que o blog voltasse às raízes, mas sei que é impossível... ainda vou tentar falar um pouco das minhas experiências, porque elas quebram a resistência mental de muitos que também passam a encarar suas próprias experiências de forma mais natural. Gente, eu já vi coisas que nunca pensei que veria, passei por experiências que só lia em livros, como posso ser cético e ignorar isso? Como posso guardar isso só pra mim e deixar milhares de outras pessoas que passam pelas mesmas coisas achando que são loucas, e eventualmente se tornando loucas por conta de remédios que são diagnosticados pelos "sãos"?

Existem dois mundos: o mundo em que vivemos, e o mundo que nós percebemos. E ambos podem ser muito, muito diferentes. E qual dos dois é o "real"? Será que temos de confrontar nosso EU para adequar o mundo que percebemos à expectativa da família, amigos e da sociedade? Tem um filme que gosto muito e me inspira, que é Amélie Poulain. Uma mulher sensível, livre das amarras da Matrix, e por isso mesmo deslocada da sua "realidade". Ela resolve então injetar um pouco do mundo dela na vida dos outros e, assim como um Buda, iluminar a vida das pessoas, nem que seja por um único instante.

No filme tem uma música que me serve como lema, e que sempre ouço para criar coragem:


Les jours tristes
Por Yann Tiersen & Neil Hannon

It's hard, hard not to sit on your hands
And bury your head in the sand
Hard not to make other plans
and claim that you've done all you can... all along
And life must go on

It's hard, hard to stand up for what's right
And bring home the bacon each night
Hard not to break down and cry
When every idea that you've tried has been wrong
But you must carry on

It's hard but you know it's worth the fight
'cause you know you've got the truth on your side
When the accusations fly, hold tight
Don't be afraid of what they'll say
Who cares what cowards think, anyway
They will understand one day, one day

It's hard, hard when you're here all alone
And everyone else has gone home
Harder to know right from wrong
When all objectivity's gone
And it's gone
But you still carry on

'cause you, you are the only one left
And you've got to clean up this mess
You know you'll end up like the rest
Bitter and twisted, unless
You stay strong and you carry on

It's hard but you know it's worth the fight
'cause you know you've got the truth on your side
When the accusations fly, hold tight
And don't be afraid of what they'll say
Who cares what cowards think, anyway
They will understand one day, one day.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A ÉTICA PROFISSIONAL COMO TRADUÇÃO DO AMOR



Por Emerson Barros de Aguiar

Alguém pode não saber ler ou nunca ter ouvido falar de ética, mas só será feliz se for ético. Ética não é uma condição que a gente tem de atender para agradar a empresa ou ao chefe; não é recitar códigos ou doutrinas.

Ética é o que fica da vida que levamos, das coisas que fazemos todo dia, agora; é o saldo que resta em nosso coração das ações que praticamos. Não se pode aprender ética apenas em livros ou em aulas e, menos ainda, em palestras. Ela está lá no Evangelho de Jesus: no Sermão da Montanha e em muitas outras passagens. Mas não é difícil encontrar a ética dentro de nós, saber o melhor caminho a seguir.

A felicidade de comercial não é sustentável. A satisfação dos cartões de crédito, do consumo, dos vícios ou da corrupção. A felicidade que tira dos outros, diminui muito mais de nós mesmos. Isto não é moralismo, não é pieguice, é realidade! "Ignorante" é o nome dado por Sócrates a quem ainda não sabe disso. Todo mundo vai descobrir que o mal não vale a pena, que o egoísmo não constrói nada, só estraga, destrói. De uma maneira ou de outra vai descobrir disso. A boa vontade será a melhor maneira e a decepção, a pior. . .

Não precisamos sofrer tanto para aprender que a vida é muito mais ajudar e compartilhar do que competir, ferir e derrotar. Quem tem o coração cheio de amor, tem ética, naturalmente. Ética é não estar preocupado com a reputação, mas com o caráter. O comportamento espontâneo, generoso e fraterno, é ética.

Quando a ética não é uma escolha, mas um dever imposto pela consciência, isto é ética. Quando estamos empenhados em dar o melhor de nós e não em sermos os primeiros, isto é ética.

Quando nos esforçamos para ter bondade e não para aparentar bondade, isto é ética. Quando o cuidado com os sentimentos dos outros lapida a dureza das palavras, isto é ética.

Quando olhamos para os outros e nos colocamos no lugar deles, quando vemos Deus nos outros, isto é ética. Quando perdoamos, deixando espaço livre na nossa memória para paisagens de ternura e humanidade, isto é ética.

Quando descobrimos uma qualidade nova em alguém que não gostamos, isto é ética. Quando identificamos em nós algum defeito e enxergamos como a vida é maravilhosa, isto também é ética.

Quando não nos vingamos de quem nos prejudicou, mesmo tento a oportunidade ideal, isto é ética. Quando olhamos os filhos dos outros como nossos próprios filhos e os empregos dos outros como o nosso "ganha pão", isto é ética. Quando sabemos que o dinheiro, o conforto, a posição ou o status de que desfrutamos são apenas privilégios e não direitos, pois podem nos ser tirados a qualquer momento pelo infortúnio, pelo imponderável ou pela morte: isto é ética!

Quando aquilo em que acreditamos não é expresso como uma declaração de princípios, mas sai da nossa boca como poesia, isto é ética! Quando somente conseguimos conspirar pela felicidade dos outros, isto é ética.

Quando sabemos que o amor pela pedra, pelo inseto, pela planta, pela brisa e por todas as coisas, que a ação em benefício de alguém que nem conhecemos e que a gratidão pela vida são tesouros permanentes, isto é ética. Quando sentimos que o amor invadiu cada sílaba que pronunciamos, cada lembrança, cada gesto, olhar e tarefa, enfeitando o templo do coração com as flores do bem, isto é felicidade...


O prof. Emerson Barros de Aguiar é Doutor em Filosofia pela Universidad de Zaragoza (Espanha), Escritor e Professor Universitário em João Pessoa (PB)

KEN WILBER: AUSÊNCIA DO EGO



Do livro One Taste, de Ken Wilber

Tradução e notas de Ari Raynsford

Justamente porque o ego, a alma e o Eu (Self) podem estar presentes ao mesmo tempo, não será difícil entender o sentido verdadeiro de "Egolessness, no original.');" onmouseout="nd();">ausência do ego" – expressão que tem causado imensa confusão. Ausência do ego não significa a ausência de um eu (self) funcional (o que seria próprio de um psicótico e não de um sábio); significa que não estamos mais exclusivamente identificados com aquele eu.

Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a noção de "ausência do ego" é que desejamos que nossos "sábios sem ego" satisfaçam às nossas fantasias relativas a "santidade" ou "espiritualidade", o que, habitualmente, significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para baixo, livres das vontades ou desejos da carne, eternamente sorridentes. Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam – dinheiro, comida, sexo, relacionamentos, desejos. "Sábios sem ego" estão "acima de tudo isso" – assim desejamos. Queremos cabeças que falem. Acreditamos que a religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos, de todas as formas de relacionamento, considerando a religião, não como orientação para viver a vida com entusiasmo, mas, sim, como guia para evitá-la, reprimi-la, negá-la, fugir dela.

Em outras palavras, o homem típico espera que o sábio espiritual seja "menos que uma pessoa", de alguma forma liberto dos impulsos confusos, difusos, complexos, pulsantes, compulsivos, que guiam a maior parte dos seres humanos. Esperamos que nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona. Queremos que não sejam sequer tocados por todas as coisas que nos atemorizam, que nos confundem, que nos atormentam, que nos atordoam. É a essa ausência, a essa falta, a esse "menos que uma pessoa" que, frequentemente, chamamos "sem ego".

Entretanto, "sem ego" não significa " menos que uma pessoa"; significa "mais que uma pessoa". Não pessoa menos, mas pessoa mais – isto é, todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais. Pensemos nos grandes iogues, santos e sábios – de Moisés a Cristo, a Padmasambhava. Não foram desfibrados maneirosos, mas dinâmicos e instigantes – desde o episódio dos vendilhões do Templo até a imposição de novos rumos a nações inteiras. Lidaram com o mundo em seus próprios termos, não em termos de uma piedade melosa; muitos deles provocaram revoluções sociais significativas, que se estenderam por milhares de anos. E assim fizeram, não porque tivessem evitado as dimensões físicas, emocionais e mentais da humanidade, e o ego, que é o veículo de todas elas, mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as próprias fundações do mundo. Indiscutivelmente, estavam também intimamente ligados com a alma (o psiquismo mais profundo) e o espírito (o Eu informe) – fonte última de sua força – mas expressaram essa força e tiraram dela resultados concretos, exatamente porque assumiram, decididamente, as dimensões menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas as pessoas.

Esses grandes mobilizadores e agentes de mudança não foram egos pequenos; foram, na mais completa acepção do termo, grandes egos, justamente porque o ego (veículo funcional do domínio da mente) pode existir e de fato existe com a alma (veículo do sutil) e o Eu (veículo do causal). Na mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente, eles mobilizaram o próprio ego, porque o ego é o veículo desse reino. Entretanto, não se identificavam meramente com seu ego (isso seria narcisismo); simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte cosmos. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das palavras cosmos e universo hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio divino)..."');" onmouseout="nd();">Kósmica radiante. Os grandes iogues, santos e sábios conseguiram tanto, exatamente porque não foram tímidos bajuladores, mas grandes egos ligados ao seu Eu superior, animados pelo puro Atman (o puro Eu – eu, uma vez que o Self é a autêntica Testemunha do eu.');" onmouseout="nd();">Eu – eu) que é um com Brahman; abriram a boca e o mundo estremeceu, caiu de joelhos e pôde ver face a face o Deus radioso.

Santa Teresa não foi uma grande contemplativa? Sim, e Santa Teresa foi a única mulher que reformou uma tradição monástica inteira (pensemos nisso). Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos. Rumi, Plotino, Bodhidharma, Lady Tsogyal, Lao Tsé, Platão, o Baal Shem Tov – estes homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas, às vezes milhares de anos – coisa que nem Marx, nem Lenin, nem Locke, nem Jefferson, poderiam afirmar ter conseguido. E não agiram assim porque estivessem mortos do pescoço para baixo. Não, eles eram fantasticamente, divinamente grandes egos, ligados profundamente ao psíquico, que estava diretamente ligado a Deus.

Existe certa verdade na noção do transcender o ego: não significa destruir o ego, mas, sim, conectá-lo a alguma coisa maior. Como afirma Nagarjuna, no mundo relativo, atman é real; no absoluto nem atman nem anatman são reais. Assim, em nenhum caso annatta corresponde a uma descrição correta da realidade. O pequeno ego não se evapora; permanece como o centro funcional da atividade no domínio convencional. Como eu disse, perder esse ego significa tornar-se um psicótico, não um sábio.

"Transcender o ego", significa, pois, em verdade, transcender mas incluir o ego num envolvimento mais profundo e mais elevado, primeiro na alma ou psiquismo mais profundo, depois na Testemunha ou Eu superior e, então, após a absorção nos níveis precedentes, envolver-se, incluir-se e abraçar-se na radiância do Um Sabor. E isto não significa, portanto, "livrar-se" do pequeno ego, mas, ao contrário, habitar nele plenamente, vivê-lo com entusiasmo, usá-lo como veículo necessário, através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas. Alma e espírito incluem o corpo, as emoções e a mente; não os eliminam.

Grosseiramente, podemos dizer que o ego não é uma obstrução ao Espírito, mas uma radiosa manifestação do Espírito. Todas as Formas não são senão o Vazio, inclusive a forma do próprio ego. Não é necessário livrar-se do ego, mas, simplesmente, vivê-lo com certa intensidade. Quando a identificação transborda do ego no Kosmos em geral, o ego descobre que o Atman individual é, de fato, da mesma espécie de Brahman. O Eu superior não é, em verdade, um pequeno ego, e, assim, no caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego, a morte e a transcendência são necessárias. Os narcisistas são, simplesmente, pessoas cujos egos não são ainda suficientemente grandes para abraçar o Kosmos inteiro e, para compensar, tentam tornar-se o próprio centro do Kosmos.

Não queremos que nossos sábios tenham grandes egos; sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente. Sempre que um sábio se mostra humano – a respeito de dinheiro, comida, sexo, relacionamentos – sentimo-nos chocados, porque estamos planejando fugir inteiramente da vida, e o sábio que vive a vida nos ofende. Queremos estar fora, queremos ascender, queremos escapar, e o sábio que assume a vida com prazer, vive-a totalmente, pega cada onda da vida e surfa nela até o fim – nos perturba e nos assusta intensamente, profundamente, porque significa que nós, também, deveríamos assumir a vida com prazer, em todos os níveis, e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea, luminosa. Não queremos que nossos sábios tenham corpo, ego, impulsos, vitalidade, sexo, dinheiro, relacionamentos ou vida, porque essas são coisas que habitualmente nos torturam e queremos vê-las longe de nós. Não queremos surfar as ondas da vida, queremos que as ondas desapareçam. Queremos uma espiritualidade feita de fumaça.

O sábio completo, o sábio não-dual está aqui para mostrar-nos o contrário. Geralmente conhecidos como "tântricos", estes sábios insistem em transcender a vida, vivendo-a. Insistem em procurar libertação no envolvimento, encontrando o nirvana no meio do samsara, encontrando a liberação total pela completa imersão. Passam com consciência pelos nove círculos do inferno, certos de que em nenhum outro lugar encontrarão os nove círculos do céu. Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor.
Na verdade, o segredo consiste em estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos, com a mente e suas idéias, com o espírito e sua luz. Assumi-los inteiramente, plenamente, simultaneamente, uma vez que todos são igualmente manifestações do Um e Único Sabor. Vivenciar a paixão e vê-la funcionar; penetrar nas idéias e acompanhar seu brilho; ser absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear. Corpo, mente e espírito, totalmente contidos, igualmente contidos, na consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo.

Na quietude da noite, a Deusa sussurra. Na luminosidade do dia, Deus amado brada. A vida pulsa, a mente imagina, as emoções ondulam, os pensamentos vagam. O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor, eternamente jogando com suas próprias manifestações, sussurrando mansamente a quem quiser ouvir: isto não é você mesmo? Quando o trovão ruge, você não ouve o seu Eu? Quando irrompe o raio, você não vê o seu Eu? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu, não é o seu próprio Ser ilimitado que está acenando para você?


O ÚLTIMO DISCURSO



Proferido no final do filme O grande Ditador, é um dos mais belos textos pacifistas já escrito, um legado para todas as gerações. Não ficou preso a um contexto social ou político, nem ficou parado no tempo.

Nós continuamos a luta pela paz, pela esperança. Nós ainda queremos um mundo melhor para os nossos filhos... Mas nos acomodamos nas trincheiras dos sentidos. Por que amar, se é mais fácil odiar? Por que ajudar, se é mais fácil ignorar? Por que lutar, se podemos aguardar em nossos bunkers que o bombardeio acabe e não sobre mais nada a ser destruído?

A mensagem de Chaplin é uma convocação á luta. Sim, uma convocação à boa luta, como disse Paulo de Tarso em Timóteo 4:7, e como fez Gandhi, durante toda a sua vida pública. Lutemos, pois!

"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar - se possível - judeus, o gentio ... negros ... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma do homem... levantou no mundo as muralhas do ódio ... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, emperdenidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-se muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal ... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas ... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem os homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam ... que vos escravizam ... que arregimentam as vossas vidas ... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos.

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Estás em vós! Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!"

OS PERIGOS DA ARROGÂNCIA

Escrito por Luiz Marins

"Cuidado! Não caias"

Após uma vitoriosa batalha, havia o "Triunfo". Triunfo era uma das maiores solenidades da antiga Roma e a maior recompensa dada aos generais vitoriosos. Vestido de púrpura com uma coroa de louros na cabeça, sentado num magnífico carro puxado por quatro cavalos brancos e precedido por senadores, rodeado por parentes e amigos, seguido por todo o seu exército e por um grande número de cidadãos, o general vitorioso - o Triunfador - era conduzido em pompa ao Capitólio Romano. Adiante dele iam os despojos dos inimigos vencidos - quadros e objetos de arte das províncias que havia conquistado. Com correntes de ouro e prata iam à frente os reis e os chefes prisioneiros. Atrás, as vítimas que deveriam morrer.

Durante essa cerimônia, para abater o orgulho que um aparato tão deslumbrante pudesse inspirar ao Triunfador, um escravo, colocado atrás dele, no mesmo carro, juntava uma voz discordante às aclamações da multidão e fazia ouvir cantos mofadores e palavras satíricas: "Lembra-te que és homem", gritava ele ao vitorioso: "Cuidado! Não caias" (Cave ne cadas, em latim).

Aquele escravo, junto ao Triunfador, repetia a ele aquele alerta para que, em meio à embriaguez da glória, o general romano não se esquecesse de sua condição humana. Para que tanta pompa e circunstância não o fizessem pensar ser um "deus" ou alguém dotado de poderes divinos. O escravo repetia incessantemente o Cave ne cadas para que o general romano se lembrasse de que muitas vezes a queda segue, de perto, o Triunfo.

Fico imaginando quantas pessoas e empresas se deixaram tornar arrogantes pelo sucesso de um produto, de um prêmio recebido, de um triunfo qualquer. Fico imaginando quantas pessoas e empresas se deixaram embriagar pela pompa e circunstância de um momento de glória e pouco tempo depois caíram em desgraça, perderam o poder, faliram. Marcas famosas. Impérios indestrutíveis. Fortunas imensas. De repente, tudo acaba sem que o vulgus sequer consiga compreender como a queda ocorreu. Às vezes, rápida demais. Às vezes, logo após o triunfo.

Fico pensando se essas pessoas e empresas tivessem tido alguém a lhes dizer durante o seu Triunfo: "Cuidado! Não Caias" - Cave ne cadas - se elas teriam tido mais cuidado, sido menos arrogantes, menos "cheias de si", achando-se menos "deuses" e mais humanas. Talvez não tivessem perdido suas vidas, suas empresas, suas marcas. Talvez tivessem tido a sabedoria de ver que justamente na vitória, a humildade é fundamental.

Se você ou sua empresa estão experimentando um grande sucesso ou mesmo um pequeno triunfo, lembre-se de tomar cuidado para não cair. Cave ne cadas é um conselho que vale para todos nós, sempre.
Pense nisso.
Sucesso!

SUFISMO


Escrito por Robert Graves, para o livro "Os Sufis", de Idries Shah

Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual cujas origens nunca foram traçadas nem datadas; nem eles mesmos se interessam muito por esse tipo de pesquisa, contentando-se em mostrar a ocorrência da sua maneira de pensar em diferentes regiões e períodos. Conquanto sejam, de ordinário, erroneamente tomados por uma seita muçulmana, os sufis sentem-se à vontade em todas as religiões: exatamente como os "pedreiros-livres e aceitos", abrem diante de si, em sua loja, qualquer livro sagrado - seja a Bíblia, seja o Corão, seja a Torá - aceito pelo Estado temporal. Se chamam ao islamismo a "casca" do sufismo, é porque o sufismo, para eles, constitui o ensino secreto dentro de todas as religiões. Não obstante, segundo Ali el-Hujwiri, escritor sufista primitivo e autorizado, o próprio profeta Maomé disse: "Aquele que ouve a voz do povo sufista e não diz aamin (amém) é lembrado na presença de Deus como um dos insensatos". Numerosas outras tradições o associam aos sufis, e foi em estilo sufista que ele ordenou a seus seguidores que respeitassem todos os "Povos do Livro", referindo-se dessa maneira aos povos que respeitavam as próprias escrituras sagradas - expressão usada mais tarde para incluir os zoroastrianos.

Tampouco são os sufis uma seita, visto que não acatam nenhum dogma religioso, por mais insignificante que seja, nem se utilizam de nenhum local regular de culto. Não têm nenhuma cidade sagrada, nenhuma organização monástica, nenhum instrumento religioso. Não gostam sequer que lhes atribuam alguma designação genérica que possa constrangê-los à conformidade doutrinária. "Sufi" não passa de um apelido, como "quacre", que eles aceitam com bom humor. Referem-se a si mesmos como "nós amigos" ou "gente como nós", e reconhecem-se uns aos outros por certos talentos, hábitos ou qualidades de pensamento naturais. As escolas sufistas reuniram-se, com efeito, à volta de professores particulares, mas não há graduação, e elas existem apenas para a conveniência dos que trabalham com a intenção de aprimorar os estudos pela estreita associação com outros sufis. A assinatura sufista característica encontra-se numa literatura amplamente dispersa desde, pelo menos, o segundo milênio antes de Cristo, e se bem o impacto óbvio dos sufis sobre a civilização tenha ocorrido entre o oitavo e o décimo oitavo séculos, eles continuam ativos como sempre. O seu número chega a uns cinqüenta milhões. O que os torna um objeto tão difícil de discussão é que o seu reconhecimento mútuo não pode ser explicado em termos morais ou psicológicos comuns - quem quer que o compreenda é um sufi. Posto que se possa aguçar a percepção dessa qualidade secreta ou desse instinto pelo íntimo contato com sufis experientes, não existem graus hierárquicos entre eles, mas apenas o reconhecimento geral, tácito, da maior ou menor capacidade de um colega.

O sufismo adquiriu um sabor oriental por ter sido por tanto tempo protegido pelo islamismo, mas o sufi natural pode ser tão comum no Ocidente como no Oriente, e apresentar-se vestido de general, camponês, comerciante, advogado, mestre-escola, dona-de-casa, ou qualquer outra coisa. "Estar no mundo mas não ser dele", livre da ambição, da cobiça, do orgulho intelectual, da cega obediência ao costume ou do respeitoso temor às pessoas de posição mais elevada - tal é o ideal do sufi.

Os sufis respeitam os rituais da religião na medida em que estes concorrem para a harmonia social, mas ampliam a base doutrinária da religião onde quer que seja possível e definem-lhe os mitos num sentido mais elevado - por exemplo, explicando os anjos como representações das faculdades superiores do homem. Oferecem ao devoto um "jardim secreto" para o cultivo da sua compreensão, mas nunca exigem dele que se torne monge, monja ou eremita, como acontece com os místicos mais convencionais; e mais tarde, afirmam-se iluminados pela experiência real - "quem prova, sabe" - e não pela discussão filosófica. A mais antiga teoria de evolução consciente que se conhece é de origem sufista, mas embora muito citada por darwinianos na grande controvérsia do século XIX, aplica-se mais ao indivíduo do que à raça. O lento progresso da criança até alcançar a virilidade ou a feminilidade figura apenas como fase do desenvolvimento de poderes mais espetaculares, cuja força dinâmica é o amor, e não o ascetismo nem o intelecto.

A iluminação chega com o amor - o amor no sentido poético da perfeita devoção a uma musa que, sejam quais forem as crueldades aparentes que possa cometer, ou por mais aparentemente irracional que seja o seu comportamento, sabe o que está fazendo. Raramente recompensa o poeta com sinais expressos do seu favor, mas confirma-lhe a devoção pelo seu efeito revivificante sobre ele. Assim, Ibn El-Arabi (1165-1240), um árabe espanhol de Múrcia, que os sufis denominam o seu poeta maior, escreveu no Tarju-man el-Ashwaq (o intérprete dos desejos):

"Se me inclino diante dela como é do meu dever E se ela nunca retribui a minha saudação Terei, acaso, um justo motivo de queixa? A mulher formosa a nada é obrigada"

Esse tema de amor foi, posteriormente, usado num culto extático da Virgem Maria, a qual, até o tempo das Cruzadas, ocupara uma posição sem importância na religião cristã. A maior veneração que ela recebe hoje vem precisamente das regiões da Europa que caíram de maneira mais acentuada sob a influência sufista.

Diz de si mesmo, Ibn El-Arabi:

"Sigo a religião do Amor.
Ora, às vezes, me chamam
Pastor de gazelas [divina sabedoria]
Ora monge cristão,
Ora sábio persa.
Minha amada são três -
Três, e no entanto, apenas uma;
Muitas coisas, que parecem três,
Não são mais do que uma.
Não lhe dêem nome algum,
Como se tentassem limitar alguém
A cuja vista
Toda limitação se confunde"

Os poetas foram os principais divulgadores do pensamento sufista, ganharam a mesma reverência concedida aos ollamhs, ou poetas maiores, da primitiva Irlanda medieval, e usavam uma linguagem secreta semelhante, metafórica, constituída de criptogramas verbais. Escreve Nizami, o sufi persa: "Sob a linguagem do poeta jaz a chave do tesouro". Essa linguagem era ao mesmo tempo uma proteção contra a vulgarização ou a institucionalização de um hábito de pensar apropriado apenas aos que o compreendiam, e contra acusações de heresia ou desobediência civil. Ibn El-Arabi, chamado às barras de um tribunal islâmico de inquisição em Alepo, para defender-se da acusação de não-conformismo, alegou que os seus poemas eram metafóricos, e sua mensagem básica consistia no aprimoramento do homem através do amor a Deus. Como precedente, indicava a incorporação, nas Escrituras judaicas, do Cântico erótico de Salomão, oficialmente interpretado pelos sábios fariseus como metáfora do amor de Deus a Israel, e pelas autoridades católicas como metáfora do amor de Deus à Igreja.

Em sua forma mais avançada, a linguagem secreta emprega raízes consonantais semíticas para ocultar e revelar certos significados; e os estudiosos ocidentais parecem não ter se dado conta de que até o conteúdo do popular "As mil e uma noites" é sufista, e que o seu título árabe, Alf layla wa layla, é uma frase codificada que lhe indica o conteúdo e a intenção principais: "Mãe de Lembranças". Todavia, o que parece, à primeira vista, o ocultismo oriental é um antigo e familiar hábito de pensamento ocidental. A maioria dos escolares ingleses e franceses começam as lições de história com uma ilustração de seus antepassados druídicos arrancando o visco de um carvalho sagrado. Embora César tenha creditado aos druidas mistérios ancestrais e uma linguagem secreta - o arrancamento do visco parece uma cerimônia tão simples, já que o visco é também usado nas decorações de Natal -, que poucos leitores se detêm para pensar no que significa tudo aquilo. O ponto de vista atual, de que os druidas estavam, virtualmente, emasculando o carvalho, não tem sentido.

Ora, todas as outras árvores, plantas e ervas sagradas têm propriedades peculiares. A madeira do amieiro é impermeável à água, e suas folhas fornecem um corante vermelho; a bétula é o hospedeiro de cogumelos alucinógenos; o carvalho e o freixo atraem o relâmpago para um fogo sagrado; a raiz da mandrágora é antiespasmódica. A dedaleira fornece digitalina, que acelera os batimentos cardíacos; as papoulas são opiatos; a hera tem folhas tóxicas, e suas flores fornecem às abelhas o derradeiro mel do ano. Mas os frutos do visco, amplamente conhecidos pela sabedoria popular como "panacéia", não têm propriedades medicinais, conquanto sejam vorazmente comidos pelos pombos selvagens e outros pássaros não-migrantes no inverno. As folhas são igualmente destituídas de valor; e a madeira, se bem que resistente, é pouco utilizada. Por que, então, o visco foi escolhido como a mais sagrada e curativa das plantas? A única resposta talvez seja a de que os druidas o usavam como emblema do seu modo peculiar de pensamento. Essa árvore não é uma árvore, mas se agarra igualmente a um carvalho, a uma macieira, a uma faia e até a um pinheiro, enverdece, alimenta-se dos ramos mais altos quando o resto da floresta parece adormecido, e a seu fruto se atribui o poder de curar todos os males espirituais. Amarrados à verga de uma porta, os ramos do visco são um convite a beijos súbitos e surpreendentes. O simbolismo será exato se pudermos equiparar o pensamento druídico ao pensamento sufista, que não é plantado como árvore, como se plantam as religiões, mas se auto-enxerta numa árvore já existente; permanece verde, embora a própria árvore esteja adormecida, tal como as religiões são mortas pelo formalismo; e a principal força motora do seu crescimento é o amor, não a paixão animal comum nem a afeição doméstica, mas um súbito e surpreendente reconhecimento do amor, tão raro e tão alto que do coração parecem brotar asas. Por estranho que pareça, a Sarça Ardente em que Deus apareceu a Moisés no deserto, supõem agora os estudiosos da Bíblia, era uma acácia glorificada pelas folhas vermelhas de um locanthus, o equivalente oriental do Rumi escreveu: "No inverno, os ramos nus que parecem dormir Trabalham em segredo, preparando-se para a primavera". Conquanto ele não tenha mencionado o visco, nem o locanthus, aqui está o emblema visível do processo mental secreto a que se referem os seus versos.');" onmouseout="nd();">visco.

Talvez seja mais importante o fato de que toda a arte e a arquitetura islâmicas mais nobres são sufistas, e que a cura, sobretudo dos distúrbios psicossomáticos, é diariamente praticada pelos sufis hoje em dia como um dever natural de amor, conquanto só o façam depois de haverem estudado, pelo menos, doze anos. Os ollamhs, também curadores, estudavam doze anos em suas escolas das florestas. O médico sufista não pode aceitar nenhum pagamento mais valioso do que um punhado de cevada, nem impor sua própria vontade ao paciente, como faz a maioria dos psiquiatras modernos; mas, tendo-o submetido a uma hipnose profunda, ele o induz a diagnosticar o próprio mal e prescrever o tratamento. Em seguida, recomenda o que se há de fazer para impedir uma recorrência dos sintomas, visto que o pedido de cura há de provir diretamente do paciente e não da família nem dos que lhe querem bem.

Depois de conquistadas pelos sarracenos, a partir do século VIII d.C, a Espanha e a Sicília tornaram-se centros de civilização muçulmana renomados pela austeridade religiosa. Os letrados do norte, que acudiram a eles com a intenção de comprar obras árabes a fim de traduzi-las para o latim, não se interessavam, contudo, pela doutrina islâmica ortodoxa, mas apenas pela literatura sufista e por tratados científicos ocasionais. A origem dos cantos dos trovadores - a palavra não se relaciona com trobar, (encontrar), mas representa a raiz árabe TRB, que significa "tocador de alaúde" - é agora autorizadamente considerada sarracena. Apesar disso, o professor Guillaume assinala em "O legado do Islã" que a poesia, os romances, a música e a dança, todos especialidades sufistas, não eram mais bem recebidas pelas autoridades ortodoxas do Islã do que pelos bispos cristãos. Árabes, na verdade, embora fossem um veículo não só da religião muçulmana mas também do pensamento sufista, permaneceram independentes de ambos.

Em 1229 a ilha de Maiorca foi capturada pelo rei Jaime de Aragão aos sarracenos, que a haviam dominado por cinco séculos. Depois disso, ele escolheu por emblema um morcego, que ainda encima as armas de Palma, a nossa capital. Esse morcego emblemático me deixou perplexo por muito tempo, e a tradição local de que representa "vigilância" não me pareceu uma explicação suficiente, porque o morcego, no uso cristão, é uma criatura aziaga, associada à bruxaria. Lembrei-me, porém, de que Jaime I tomou Palma de assalto com a ajuda dos Templários e de dois ou três nobres mouros dissidentes, que viviam alhures na ilha; de que os Templários haviam educado Jaime em le bon saber, ou sabedoria; e de que, durante as Cruzadas, os Templários foram acusados de colaboração com os sufis sarracenos. Ocorreu-me, portanto, que "morcego" poderia ter outro significado em árabe, e ser um lembrete para os aliados mouros locais de Jaime, presumivelmente sufis, de que o rei lhes estudara as doutrinas.

Escrevi para Idries Shah Sayed, que me respondeu:

"A palavra árabe que designa o morcego é KHuFFaasH, proveniente da raiz KH-F-SH. Uma segunda acepção dessa raiz é derrubar, arruinar, calcar aos pés, provavelmente porque os morcegos freqüentam prédios em ruínas. O emblema de Jaime, desse modo, era um simples rébus que o proclamava "o Conquistador", pois ele, na Espanha, era conhecido como "El rey Jaime, Rei Conquistador". Mas essa não é a história toda. Na literatura sufista, sobretudo na poesia de amor de Ibn El-Arabi, de Múrcia, disseminada por toda a Espanha, "ruína" significa a mente arruinada pelo pensamento impenitente, que aguarda reedificação.
O outro único significado dessa raiz é "olhos fracos, que só enxergam à noite". Isso pode significar muito mais do que ser cego como um morcego. Os sufis referem-se aos impenitentes dizendo-os cegos à verdadeira realidade; mas também a si mesmos dizendo-se cegos às coisas importantes para os impenitentes. Como o morcego, o sufi está cego para as "coisas do dia" - a luta familiar pela vida, que o homem comum considera importantíssima - e vela enquanto os outros dormem. Em outras palavras, ele mantém desperta a atenção espiritual, adormecida em outros. Que "a humanidade dorme num pesadelo de não-realização" é um lugar-comum da literatura sufista. Por conseguinte, a sua tradição de vigilância, corrente em Palma, como significado de morcego, não deve ser desprezada."

A absorção no tema do amor conduz ao êxtase, sabem-no todos os sufis. Mas enquanto os místicos cristãos consideram o êxtase como a união com Deus e, portanto, o ponto culminante da consecução religiosa, os sufis, só lhe admitem o valor se ao devoto for facultado, depois do êxtase, voltar ao mundo e viver de forma que se harmonize com sua experiência.

Os sufis insistiram sempre na praticabilidade do seu ponto de vista. A metafísica, para eles, é inútil sem as ilustrações práticas do comportamento humano prudente, fornecidas pelas lendas e fábulas populares. Os cristãos se contentame em usar Jesus como o exemplar perfeito e final do comportamento humano. Os sufis, contudo, ao mesmo tempo que o reconhecem como profeta divinamente inspirado, citam o texto do quarto Evangelho: "Eu disse: Não está escrito na vossa Lei que sois deuses?" - o que significa que juizes e profetas estão autorizados a interpretar a lei de Deus - e sustenta que essa quase divindade deveria bastar a qualquer homem ou mulher, pois não há deus senão Deus. Da mesma forma, eles recusaram o lamaísmo do Tibete e as teorias indianas da divina encarnação; e posto que acusados pelos muçulmanos ortodoxos de terem sofrido a influência do cristianismo, aceitam o Natal apenas como parábola dos poderes latentes no homem, capazes de apartá-lo dos seus irmãos não-iluminados. De idêntica maneira, consideram metafóricas as tradições sobrenaturais do Corão, nas quais só acreditam literalmente os não-iluminados. O Paraíso, por exemplo, não foi, dizem eles, experimentado por nenhum homem vivo; suas huris (criaturas de luz) não oferecem analogia com nenhum ser humano e não se deviam imputar-lhes atributos físicos, como acontece na fábula vulgar.

Abundam exemplos, em toda a literatura européia, da dívida para com os sufis. A lenda de Guilherme Tell já se encontrava em "A conferência dos pássaros", de Attar (séc. XII), muito antes do seu aparecimento na Suíça. E, embora dom Quixote pareça o mais espanhol de todos os espanhóis, o próprio Cervantes reconhece sua dívida para com uma fonte árabe. Essa imputação foi posta de lado, como quixotesca, por eruditos; mas as histórias de Cervantes seguem, não raro, as de Sidi Kishar, lendário mestre sufista às vezes equiparado a Nasrudin, incluindo o famoso incidente dos moinhos (aliás de água, e não de vento) tomados equivocadamente por gigantes. A palavra espanhola Quijada (verdadeiro nome do Quixote, de acordo com Cervantes) deriva da mesma raiz árabe KSHR de Kishar, e conserva o sentido de "caretas ameaçadoras".

Os sufis muçulmanos tiveram a sorte de proteger-se das acusações de heresia graças aos esforços de El-Ghazali (1051-1111), conhecido na Europa por Algazel, que se tornou a mais alta autoridade doutrinária do islamismo e conciliou o mito religioso corânico com a filosofia racionalista, o que lhe valeu o título de "Prova do Islamismo". Entretanto, eram freqüentemente vítimas de movimentos populares violentos em regiões menos esclarecidas, e viram-se obrigados a adotar senhas e apertos de mão secretos, além de outros artifícios para se defenderem.

Embora o frade franciscano Roger Bacon tenha sido encarado com respeitoso temor e suspeita por haver estudado as "artes negras", a palavra "negra" não significa "má". Trata-se de um jogo de duas raízes árabes, FHM e FHHM, que se pronunciam fecham e facham, uma das quais significa "negro" e a outra "sábio". O mesmo jogo ocorre nas armas de Hugues de Payns (dos pagãos), nascido em 1070 ,que fundou a Ordem dos Cavaleiros Templários: a saber, três cabeças pretas, blasonadas como se tivessem sido cortadas em combate, mas que, na realidade, denotam cabeças de sabedoria.

"Os sufis são uma antiga maçonaria espiritual..." De fato, a própria maçonaria começou como sociedade sufista. Chegou à Inglaterra durante o reinado do rei Aethelstan (924-939) e foi introduzida na Escócia disfarçada como sendo um grupo de artesãos no princípio do século XIV, sem dúvida pelos Dictionary oi dates, cita historiadores maçônicos, observando que "diz-se que os arquitetos da costa africana, maometanos, introduziram-na na Espanha, por volta do século IX". O fato de sucessivos graus marcarem a passagem efetiva através de certas experiências espirituais definitivas, alegorizadas por seus rituais, é menos compreendido.');" onmouseout="nd();">Templários. A sua reformação, na Londres do início do século XVIII, por um grupo de sábios protestantes, que tomaram os termos sarracenos por hebraicos, obscureceu-lhes muitas tradições primitivas. Richard Burton, tradutor das "Mil e uma noites", ao mesmo tempo maçom e sufi, foi o primeiro a indicar a estreita relação entre as duas sociedades, mas não era tão versado que compreendesse que a maçonaria começara como um grupo sufista. Idries Shah Sayed mostra-nos agora que foi uma metáfora para a "reedificação", ou reconstrução, do homem espiritual a partir do seu estado de decadência; e que os três instrumentos de trabalho exibidos nas lojas maçônicas modernas representam três posturas de oração. "Buizz" ou "Boaz" e "Salomão, filho de Davi", reverenciados pelos maçons como construtores do Templo de Salomão em Jerusalém, não eram súditos israelitas de Salomão nem aliados fenícios, como se supôs, senão arquitetos sufistas de Abdel-Malik, que construíram o Domo da Rocha sobre as ruínas do Templo de Salomão, e seus sucessores. Seus verdadeiros nomes incluíam Thuban abdel Faiz "Izz", e seu "bisneto", Maaruf, filho (discípulo) de Davi de Tay, cujo nome sufista em código era Salomão, por ser o "filho de Davi". As medidas arquitetônicas escolhidas para esse templo, como também para o edifício da Caaba em Meca, eram equivalentes numéricos de certas raízes árabes transmissoras de mensagens sagradas, sendo que cada parte do edifício está relacionada com todas as outras, em proporções definidas.

De acordo com o princípio acadêmico inglês, o peixe não é o melhor professor de ictiologia, nem o anjo o melhor professor de angelologia. Daí que a maioria dos livros modernos e artigos mais apreciados a respeito do sufismo sejam escritos por professores de universidades européias e americanas com pendores para a história, que nunca mergulharam nas profundezas sufistas, nunca se entregaram às extáticas alturas sufistas e nem sequer compreendem o jogo poético de palavras pérseo-arábicas. Pedi a Idries Shah Sayed que remediasse a falta de informações públicas exatas, ainda que fosse apenas para tranqüilizar os sufis naturais do Ocidente, mostrando-lhes que não estão sós em seus hábitos peculiares de pensamento, e que as suas intuições podem ser depuradas pela experiência alheia. Ele consentiu, embora consciente de que teria pela frente uma tarefa muito difícil. Acontece que Idries Shah Sayed, descendente, pela linha masculina, do profeta Maomé, herdou os mistérios secretos dos califas, seus antecessores. É, de fato, um Grande Xeque da Tariqa (regra) sufista, mas como todos os sufis são iguais, por definição, e somente responsáveis perante si mesmos por suas consecuções espirituais, o título de "xeque" é enganoso. Não significa "chefe", como também não significa o "chefe de fila", velho termo do exército para indicar o soldado postado diante da companhia durante uma parada, como exemplo de exercitante militar.

A dificuldade que ele previu é que se deve presumir que os leitores deste livro tenham percepções fora do comum, imaginação poética, um vigoroso sentido de honra, e já ter tropeçado no segredo principal, o que é esperar muito. Tampouco deseja ele que o imaginem um missionário. Os mestres sufistas fazem o que podem para desencorajar os discípulos e não aceitam nenhum que chegue "de mãos vazias", isto é, que careça do senso inato do mistério central. O discípulo aprende menos com o professor seguindo a tradição literária ou terapêutica do que vendo-o lidar com os problemas da vida cotidiana, e não deve aborrecê-lo com perguntas, mas aceitar, confiante, muita falta de lógica e muitos disparates aparentes que, no fim, acabarão por ter sentido. Boa parte dos principais paradoxos sufistas está em curso em forma de histórias cômicas, especialmente as que têm por objeto o Kboja (mestre-escola) Nasrudin, e ocorrem também nas fábulas de Esopo, que os sufis aceitam como um dos seus antepassados.

O bobo da corte dos reis espanhóis, com sua bengala de bexiga, suas roupas multicoloridas, sua crista de galo, seus guizos tilintantes, sua sabedoria singela e seu desrespeito total pela autoridade, é uma figura sufista. Seus gracejos eram aceitos pelos soberanos como se encerrassem uma sabedoria mais profunda do que os pareceres solenes dos conselheiros mais idosos. Quando Filipe II da Espanha estava intensificando sua perseguição aos judeus, decidiu que todo espanhol que tivesse sangue judeu deveria usar um chapéu de certo formato. Prevendo complicações, o bobo apareceu na mesma noite com três chapéus. "Para quem são eles, bobo?", perguntou Filipe. "Um é para mim, tio, outro para ti e outro para o inquisidor-mor". E como fosse verdade que numerosos fidalgos medievais espanhóis haviam contraído matrimônio com ricas herdeiras judias, Filipe, diante disso, desistiu do plano. De maneira muito semelhante, o bobo da corte de Carlos I, Charlie Armstrong (outrora ladrão de carneiros escocês), que o rei herdara do pai, tentou opor-se à política da Igreja arminiana do arcebispo Laud, que parecia destinada a redundar num choque armado com os puritanos. Desdenhoso, Carlos pedia a Charlie seu parecer sobre política religiosa, ao que o bobo lhe respondeu: "Entoe grandes louvores a Deus, tio, e pequenas laudes ao Diabo". Laud, muito sensível à pequenez do seu tamanho, conseguiu que expulsassem Charlie Armstrong da corte (o que não trouxe sorte alguma ao amo).