quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A ESCALADA - Teotónio Vilela

A ESCALADA

Teotônio Vilela

Cansados, muito cansados, mas chegamos – vencemos os 365 dias. Não há parte do nosso corpo que não tenha sofrido; não há sutilidade de nossa alma que não se tenha abalado. Foi um ano de guerras sucessivas – ano grave, punidor, carregado de todo o travo bíblico da consciência do castigo. Dias violentos – principalmente quando a violência se diz sensatez e outorga direitos; dias sombrios – quando a penumbra serve inocentemente de emboscada e a luz que ardentemente se espera fica espremida nos subterrâneos da solidão. Mas, que grandeza há na vida se não luta? Nenhuma, sem dúvida. E que beleza há na luta sem vitória? De certo, a dignidade obscura de não ceder à opressão – que é a câmara de gás do espírito humano. Vede: nas multidões que passam quantos corpos vazios, quantas almas executadas! Felizes os que passaram pelos dias violentos e cansados, muito cansados, sentem ainda dentro do peito opresso e lacerado a vibração correta do espírito.

Agora, vivemos um minuto de trégua entre o ano que finda e o ano que chega. Os braços se estendem em busca de amor e o pensamento sobe em busca de paz. O amor ainda é uma felicidade realizável em curto prazo. E a paz? Como é longe a sua misteriosa e discutida morada! Há séculos que perseguimos as suas pegadas; há séculos que informamos que ela está próxima; há séculos que afirmamos que ela existe. Por isso, reiniciamos cada ano, a mesma escalada – subindo sem remorsos nas costas das gerações que vão ficando, fazendo de cada homem uma pedra da pirâmide que tenta alcançar o céu dos nossos sonhos. Não custa nada um olhar de homenagem sobre os degraus abismais que as civilizações mais diversas e mais antigas fizeram para essa escalada interminável e fatal.

Que esse minuto de trégua seja dedicado à resistência do homem que sobrevive e à bondade do Homem-Deus que viverá sempre. Que esse minuto de trégua nos faça ver menos ilusões e dê melhores condições ao homem de se conhecer a si mesmo. Será pedir muito? Há quem diga que esse apelo é tão antigo quanto inócuo; acredita-se que se o homem chegasse a se conhecer em todas as suas minúcias, tornar-se-ia como a vaidosa fada diante do espelho que lhe retrata a figura real – um irado contestador da própria imagem. Pois, admite-se que coisas reprováveis rastejam, tanto no íntimo de criaturas irresponsáveis, quanto no íntimo de criaturas respeitáveis.

É tempo de esquecer, saudar e renascer. Nesse minuto de bem-estar universal é preciso que a bandeira do otimismo concentre e oriente a nossa visão. Só assim, o homem pode brincar na espuma de suas esperanças e ir jogando para o ar as bolhas multicores que a sôfrega imaginação cria e desenha no calendário do Ano Novo. Então a vida se empolga com os novos rumos e as novas paisagens. O mundo panorâmico, de sugestões fantásticas, recalca a dor e abre alas para a alegria passar, reanimando a fé em todos os corações. Instante válido e venturoso – quase eterno no seu simbolismo de congraçamento humano e convicção do futuro. Caem as vestes remendadas do trabalho exaustivo do Ano Velho e vestem-se as imaculadas túnicas inconsúteis do Ano Novo.

O som feliz da meia-noite já vai se quebrando nas encostas insensíveis das horas e emudecendo nas curvas das distâncias. Sigamos, a Paz mora longe e o sol dos séculos nos vigia, implacável, marcando o tempo perdido. Sigamos – enquanto a alegria do Ano Novo estimula os nossos velhos sonhos de criança.

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