sábado, 28 de fevereiro de 2009

É POSSIVEL SAIR DA MATRIX..???

Matrix (1999), filme de ficção científica cyberpunk dirigido pelos irmãos Larry e Andy Wachowski, revolucionou o cinema pós-moderno. A temática e os efeitos especiais utilizados resultaram em quatro estatuetas do Oscar no ano de 2000 – nas categorias de melhores Efeitos Visuais, Efeitos Sonoros, Som e Montagem. No futuro, aproximadamente no ano de 2199, a humanidade tornou-se a fonte de energia elétrica de uma Inteligência Artificial (IA) denominada Matrix. Esta manteria os seres humanos confinados em casulos através de uma simulação neuro-interativa extremamente realista, ou seja, de uma realidade virtual que substituiria o mundo real. Contudo, algumas pessoas conectadas a este sistema constantemente questionavam-se: o que é a Matrix? A busca de resposta para esta pergunta inicia-se no verbete matriz. O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) define esta palavra de origem latina (matrix) como útero, local onde algo é criado, fonte, origem. No longa-metragem a definição apresentada por Morpheus, o líder da resistência humana, é a seguinte: “A Matrix está em todo o lugar [...]. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade [...] que você é um escravo. [...] O que é a Matrix? Controle”. A junção destas duas explicações possibilita a caracterização da Matrix como a representação do sistema sócio-político-econômico-cultural de regras que regem a vida das pessoas, ou seja, o conjunto de metanarrativas e dispositivos de autoridade e vigilância utilizados para moldá-las e torná-las obedientes sem objeções ou questionamentos.Segundo Kechikian (1993, p. 47), metanarrativas são “discursos legitimadores do poder e do saber, que ao contrário dos mitos, não buscam o princípio da sua legitimação num ‘acto original fundador’, mas constituem-se antes em projectos escatológicos de realização histórica”. Elas também se vinculam aos discursos legitimadores e aos jogos de linguagem baseados em um “contrato explicito ou não entre os jogadores” (Lyotard, 1989, p. 29). Neste sentido, a busca pela e para a saída da Matrix envolve a transposição de obstáculos e superação de dúvidas que possibilitem a libertação do pensamento. Envolve o processo de “deslegitimação”, processo marcado pela perda da credibilidade nas grandes narrativas e pela busca de alternativas que possibilitem a alteração do cenário determinista. No princípio da trilogia Matrix, aparentemente se tem a impressão de que a proposta do roteiro é mostrar estratégias que possibilitem a quebra do sistema de dominação, que permitam ao ser humano dissipar as dúvidas para assumir uma postura crítica diante da tecnologia. Contudo, ao longo do desenrolar da trama vai se construindo um cenário apocalíptico onde os humanos, a despeito da luta e empenho, continuam subjugados pelas máquinas – sem liberdade e sem livre-arbítrio. Livre-arbítrio, aliás é a palavra-chave para a compreensão das três obras fílmicas.

Logo no início do primeiro filme é apresentado o grupo de resistência, formado por hackers de computadores. Os hackers, que costumeiramente são confundidos na sociedade com os crackers e vistos como marginais responsáveis por ações ilegais, são retratados como heróis, como aqueles que têm a responsabilidade de libertar as pessoas alienadas e dominadas. Os hackers, segundo Kleespie (2000) são aqueles que realizam feitos inimagináveis e exploram as fronteiras do ciberespaço. Em Matrix o grupo de hackers rebeldes somente em parte exerce essa função. E porque isso ocorre? Por que nesta busca desenfreada pela libertação das engrenagens do sistema tecnológico opressor eles não conseguem se desprender das “pseudoprofecias”.Estas exercem a função de profecias auto-realizadoras (self-fulfilling prophecy), conhecidas no âmbito educacional como “efeito pigmaleão” (Rosenthal; Jacobson, 1968). O efeito pigmaleão postula que os professores (de forma consciente ou não) criam expectativas positivas ou negativas em relação aos estudantes. Posteriormente as profecias auto-realizadoras enunciadas concretizam-se devido à aceitação e interiorização (mesmo que involuntária) do estereótipo por parte dos alunos. Ou seja, se um docente disser “você tem dificuldade em matemática e não conseguirá realizar a tarefa” está, indiretamente, induzindo o aprendiz a interiorizar esse conceito (imagem refletida) e consequentemente ao fracasso da atividade. A interligação de diversas “pseudoprofecias” complementares – presentes tanto em micro quanto em macroestruturas – pode resultar na instituição de uma metanarrativa profética. Em Matrix, todas as conjecturas futuras apresentadas pela Oráculo aos hackers da resistência formam um encadeamento de acontecimentos. Morpheus é aquele que encontrará o Escolhido. Trinity é aquela que se apaixonará pelo Escolhido. E Neo? Neo é o suposto salvador da raça humana que sai somente com uma certeza de sua conversa com a Oráculo: terá que escolher entre sua própria vida e a de Morpheus. Este mecanismo de atribuição de unidade utilizado somente surtiu efeito porque nenhum dos personagens questiona a autoridade da profetiza. “Profecia e presciência – como podem elas ser colocadas em teste diante de questões sem resposta? Considere: o quanto é verdadeira previsão [...] e o quanto é resultado do trabalho do profeta, moldando o futuro para se adequar à profecia?” (Herbert, 1987, p. 354). Neste sentido, Matrix apresenta apenas a concretização de uma virtualidade: realização de uma possibilidade já existente (Lévy, 1996). O processo de libertação, por outro lado, requer uma atualização – a criação de uma solução diferente para a problemática – um processo dinâmico que constitui “o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer” (Op. Cit. p. 16). Mas, para que haja atualização é preciso que exista a possibilidade de escolha. A escolha é um elemento de foi deletado da Matrix. Ou seja, enquanto a trama se desenrola os espectadores compreendem que também foram manipulados. Nos filmes subseqüentes (Matrix Reloaded e Matrix Revolutions) as ações empreendidas culminaram na atualização e no novo estado de estabilidade do sistema. A suposta “vitória” da Matrix constituiu de fato um jogo de peças orquestradas. A compreensão deste fato envolve duas proposições: Neo é um programa que assumiu a representação de avatar humano; Zion constitui um segundo nível de simulação – o simulacro do simulacro.
Para discutir a primeira conjectura pode-se seguir o caminho inverso e questionar: o que sustentaria a humanidade de Neo? O amor? Defende-se aqui que ele sendo um programa agente de IA avançado poderia ter sido programado pelo Arquiteto para acreditar na própria humanidade e, sem seu próprio conhecimento, colaborar para a manutenção do sistema e controle dos humanos. Neste sentido, ele também poderia ser tecnologicamente avançado, possuindo recursos que possibilitassem sua melhor e mais convincente interação com os humanos. Essa situação é análoga à apresentada no filme “O impostor” (baseado num conto de Phililp K. Dick), onde o ator Gary Sínese acredita ser humano, mas na verdade é um clone-bomba feito por alienígenas em guerra com os seres humanos. Assim sendo, no terceiro filme (Matrix Revolutions) quando Neo retorna à Fonte, está se conectando para atualizar o sistema e tornar a Matrix mais eficaz para gerenciar os humanos. Esta hipótese é sustentada pela conversa com o Arquiteto em Matrix Reloaded onde este diz a função de Neo é “retornar à fonte, permitindo uma temporária disseminação do código que você carrega, reinserindo o programa principal”, ou seja, conter o crescimento da instabilidade do sistema.Na mesma conversa o Arquiteto conta que a Oráculo – programa intuitivo desenvolvido para analisar a psique humana – concluiu que 99,9% das pessoas tinham a necessidade de acreditar na possibilidade de escolha de saída da Matrix para aceitar a existência virtual. Mas qual seria o destino do restante das pessoas? Seriam eles os habitantes de Zion? Partindo desta linha de raciocínio, pode-se conjecturar que o suposto “mundo real” de Zion constitui uma segunda camada de virtualidade. Esta funcionaria como uma espécie de firewall (“parede corta fogo”) e possibilitaria a proteção da Matrix. Um evento que sustenta esta hipótese é a capacidade de Neo de manipular as sentinelas no suposto mundo real. Todavia, quando se atinge a cifra de 1% de pessoas que não aceita a Matrix, ou seja, quando estas se encontram fora do sistema principal, é necessário destruir o segundo nível (Zion) para eliminar as anomalias sistêmicas e criar uma nova versão para abrigar as pessoas que não suportem a Matrix. No desfecho da trilogia, contudo, Zion não foi totalmente destruída, o que poderia significar uma “vitória parcial” dos humanos ou a constatação de que a humanidade encontra-se numa época limítrofe pois,"À medida que os seres humanos se confundem cada vez mais com a tecnologia e uns com os outros através da tecnologia, as velhas distinções entre o que é especificamente humano e o que é especificamente tecnológico tornam-se mais complexas. Estaremos a viver uma vida no ecrã ou dentro do ecrã? As novas relações tecnologicamente entretecidas obrigamos a perguntar até que ponto não nos tornámos já cyborgs, misturas transgressivas de biologia, tecnologia e código de computador. A distância tradicional entre a pessoa e a máquina é cada vez mais difícil de manter.[...]"Aprendemos a aceitar as coisas tal como elas se apresentam na interface do computador. Estamos a enveredar por uma cultura da simulação na qual as pessoas sentem cada vez menos pruridos em substituir o real por representações da realidade" (Turkle, 1997, p. 30-33).Portanto, mesmo neste sentido o filme é escatológico e não deixa margem para a saída da Matrix. Isso ocorre devido à efetividade da utilização de profecias auto-realizadoras e da utilização deste segundo nível de simulação neuro-interativa para controle. A trilogia, por apresentar o “simulacro do simulacro” não esclarece a real forma como os humanos foram escravizados, nem quais as características deste tipo de escravidão ou mesmo de que maneira a humanidade é utilizada pela IA. Afinal de contas, na Matrix tudo é uma ilusão: a liberdade é uma ilusão, o livre-arbítrio é uma ilusão. Do ponto de vista da sociedade contemporânea, por outro lado, conclui-se que uma opção possível é a criação do que Hakim Bey (2001, p. 17) denomina de TAZ – Zona Autônoma Temporária: “uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la”. Através da instituição de zonas autônomas temporárias, que escapam da “cartografia de controle”, pode-se colaborar para a construção de um futuro que vislumbre outros horizontes e onde as pessoas possam continuar a se questionar sobre os papéis das regras e ideologias existentes – “Free your mind”.

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