Espantava-me o fato de que a espiritualidade indiana contivesse tanto o bem como o mal. O cristão aspira pelo bem e sucumbe ao mal, o indiano, pelo contrário, sente-se fora do bem e do mal, ou procura obter esse estado pela meditação ou a ioga. Neste ponto, no entanto, é que surge minha objeção: numa tal atitude, nem o bem, nem o mal têm contornos próprios e isso leva a uma certa inércia. Ninguem acredita verdadeiramente no mal, ninguém acredita verdadeiramente no bem. Bem ou mal significam, no máximo, o que é o meu bem ou o meu mal, isto é, o que me parece ser bem ou mal. Poder-se-ia dizer, paradoxalmente, que a espiritualidade indiana é desprovida tanto do mal como do bem, ou, ainda, que se acha de tal forma oprimida pelos contrários que precisa a qualquer custo do Nirdvandva, isto é, da liberação dos contrastes e das dez mil coisas.
A meta do indiano não é atingir a perfeição moral, mas sim o estado de Nirdvandva. Quer livrar-se da natureza, e por conseguinte atingir pela meditação o estado sem imagens, o estado do vazio. Eu, pelo contrário, tendo a manter-me na contemplação viva da natureza e das imagens psíquicas, não quero desembaraçar-me nem dos homens nem de mim mesmo, nem da natureza, pois tudo isso representa, a meus olhos, uma indescritível maravilha. A natureza, a alma e vida me aparecem como uma expansão do divino. O que mais poderia desejar? Para mim, o sentido supremo do ser consiste no fato de que isso é, e não o fato de que isso não é ou não é mais.
Para mim não há liberação à tout prix (a todo o custo). Não poderia desembaraçar-me de algo que não possuo, que não fiz, nem vivi. Uma liberação real só é possível se fiz o que poderia fazer, se me entreguei totalmente a isso, ou se tomei totalmente parte nisso. Se me furtar a essa participação, amputarei de algum modo a parte de minha alma que a isso corresponde. O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, correremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada.
Em Konarak (Orissa), encontrei um pandit que me guiou e instruiu por ocasião de uma visita ao templo e ao grande "Templo-carro". Da base ao cume o pagode é coberto de esculturas obscenas e refinadas. Conversamos demoradamente sobre esse fato insólito; meu guia explicou que se tratava de um meio de atingir a espiritualização. Objetei - mostrando um grupo de camponeses jovens que olhavam essas maravilhas, de boca aberta - que eles não pareciam a caminho da espiritualização, mas que se compraziam em fantasias sexuais. Ao que meu interlocutor respondeu: "Mas é justamente disso que se trata! Como poderiam eles se espiritualizar, se não realizassem primeiro o seu carma? As imagens obscenas aí estão para lembrar-lhes seu dharma (lei); de outro modo, esses inconscientes poderiam esquecê-lo!"
A colina de Sânchi representava para mim algo de central. Lá, o budismo revelou-se a mim numa nova realidade. Compreendi a vida do Buda como a realidade do si-mesmo que penetrara uma vida pessoal e a reivindicara. Para o Buda, o si-mesmo está acima de todos os deuses. Ele representa a essência da existência humana e do mundo em geral. Enquanto unus mundus, ele engloba tanto o aspecto do ser em si, como aquele que é reconhecido e sem o qual não há mundo. O Buda certamente viu e compreendeu a dignidade cosmogônica da consciência humana; por isso via nitidamente que se alguém conseguisse extinguir a luz da consciência, o mundo se afundaria no nada. O mérito imortal de Schopenhauer foi o de ter compreendido ou redescoberto esse fato.
Cristo também - como o Buda - é uma encarnação do si-mesmo, mas num sentido muito diferente. Ambos dominaram o mundo em si mesmos: o Buda, poder-se-ia dizer, mediante uma compreensão racional; o Cristo, tornando-se vítima segundo o destino; no cristianismo, o principal é sofrer, enquanto que no budismo o mais importante é contemplar e fazer. Um e outro são justos, mas no sentido hindu o homem mais completo é o Buda. Ele é uma personalidade histórica e, portanto, mais compreensível para o homem. O Cristo é, ao mesmo tempo, homem histórico e Deus, e, por conseguinte, mais dificilmente acessível. No fundo, ele sabia apenas que devia sacrificar-se, tal como lhe fora imposto do fundo de seu ser. Seu sacrifício aconteceu para ele tal como um ato do destino. Buda agiu movido pelo conhecimento, viveu sua vida e morreu em idade avançada. É provável que a atividade de Cristo, enquanto Cristo, se tenha desenrolado em pouco tempo.
Mais tarde, produziu-se no budismo a mesma transformação que no cristianismo: Buda tornou-se então a imago da realização do si-mesmo, um modelo que se imita, pois, como disse ele, todo indivíduo que vence a cadeia dos nidanas pode tornar-se um iluminado, um Buda. Acontece o mesmo com o cristianismo. Cristo é um modelo que vive em cada cristão, expressão de sua personalidade total. Mas a evolução histórica conduziu à imitatio Christi, segundo a qual o indivíduo não segue o caminho de seu próprio destino para a totalidade, mas, pelo contrário, tenta imitar o caminho que Cristo seguiu. Da mesma forma, no oriente isso conduziu a uma fiel imitação do Buda. O fato de que o Buda se tenha tornado um modelo a ser imitado era, em si, uma debilitação de sua idéia, exatamente como a imitatio Christi é uma atecipação da detenção fatal da evolução da idéia cristã. Buda, pela virtude de sua compreensão, elevava-se acima dos deuses do bramanismo; do mesmo modo, Cristo podia gritar ao judeus: "Vois sois deuses!" (João, 10:34); mas os homens foram incapazes de compreender o sentido dessas palavras. Pelo contrário: o Ocidente chamado "cristão" caminha a passos de gigante para a possibilidade de destruir o mundo, em lugar de construir um mundo novo.
Carl Gustav Jung; Memórias, sonhos e reflexões
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